Purificação (o nascimento)

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Ela [a alma] encarna. Eu explico o significado do nascimento e as condições estabelecidas pelo processo.

Confessions of Aleister Crowley, p.700-704, a respeito dos graus da O.T.O.

No sistema iniciático da O.T.O., Lustração, ou Purificação, é a operação de magia que acontece àquelas pessoas iniciadas no Primeiro Grau: o Grau em que a pessoa experimenta o Nascimento. Previamente, esbocei impressões totalmente pessoais sobre os Graus seguintes a este, nos artigos: Consagrações (a vida),Devoção (a morte), Exaltação e Aniquilação.

Primeiramente, precisamos entender o que é lustrar, ou purificar. Nossa cultura tende a cristianizar a ideia de pureza, associando-a a uma espécie de distanciamento corporal, higienismo comportamental e romantismo espiritual. Essa concepção é frequentemente simplista e preconceituosa, raiz da negação do corpo, raiz da misoginia (a mulher sendo considerada impura, e sua menstruação suja, para as religiões abraâmicas) e raiz do racismo (quando as culturas e corpos pretos são fantasiados como sujos e contrastantes à pureza da branquitude europeia). 

Precisamos de luz contemporânea para pensar nosso caminho iniciático. Acredito que a melhor metáfora de purificação seja simplesmente o ato rotineiro do banho: limpamos o que está excessivo, acumulado, encrustado, rançoso, até patogênico. À luz de Thelema, o ato de se purificar é um retornar a si mesmo. A tela da pintura está lisa, antes de se pintá-la. Há silêncio, antes da música ser tocada. Em contato com aquilo que nos é essencial, todo o resto se transforma.

Pureza, no sentido iniciático, são aqueles momentos em que percebemos nosso próprio eixo, um ponto de repouso e conexão com nossa verdade interna. Nos sentimos como Harpocrates, o bebê no ovo: a tempestade do mundo não afeta tanto. Percebemos nossa alquimia interior acontecendo em segredo, protegida como uma semente, aconchegada e envolvida no véu negro da própria Deusa – e do nosso corpo.

Agora, como conquistar essa vivência do próprio eixo? Só há um jeito, e este é sem manuais: experimentando. E a experiência presume se misturar, tocar e ser tocado. Não sabemos nossos próprios limites até os testarmos. Essa é a dinâmica da Criança, e por isso a vivência do Primeiro Grau representa, simbolicamente, as fases iniciais da infância e juventude: precisamos investigar nossos talentos, qualidades, reações, vulnerabilidades, humores – enfim, os fios que tecem os poderes e a natureza de nossa estrela específica. 

A imagem que me vem é de crianças brincando lá fora. Uma é mais agitada, outra é mais imaginativa. No seu brincar aparecerá inveja, rejeição, raiva; também brilhantismo, cuidado, delicadeza, empatia. Elas precisam ser deixadas em paz para se descobrirem. A proteção oferecida pelos adultos deve ser mínima, apenas para garantir que o processo de aprendizagem prossiga, para acolher dores debilitantes e estimular a curiosidade e criatividade. Qualquer coisa fora disso arrisca transformar os cuidadores em pais e mães devoradores, ou líderes castradores.

As pessoas iniciadas na purificação precisam começar a descobrir o que é pertinente a elas, em meio a bagunça da vida. Embora nossa cultura cristianize a moralidade, nossa construção iniciática passa pela construção moral, que precisamos articular à luz da verdadeira vontade. Afinal, como eu me trato – e aos outros – é uma questão moral. O que eu ponho para dentro de mim – comida, convívios – é uma questão moral. Não nos enganemos: sem um sólido treino em moralidade, estaremos cegos às armadilhas do caminho iniciático, facilmente seduzidos e perdendo toda referência diante da primeira emoção arrebatadora, que se apresentará a nós como verdade absoluta.

Como podemos proceder nessa prática moral, sem nos tornarmos rígidos ou moralistas? A Lei de Thelema ajuda como guia: primeiramente, perceber que aquilo que é bom ou ruim para mim pode não significar absolutamente nada para meu próximo. O Universo é infinito na produção de diferenças. Amar o outro e deixá-lo em paz é um difícil aprendizado. Segundamente, mas igualmente difícil e importante, é se deixar em paz. Respeitar o próprio corpo, reverenciar o próprio processo. Não se enrijecer: permitir-se mudar de ideia, perceber que se está em construção. Desenvolver autoestima, ter o máximo autorrespeito. Se conscientizar da fronteira entre relações e invasões. Isso tudo confecciona uma moralidade pessoal

A prática disso pode se dar através de Yamas. Yamas são a primeira etapa da sequência prática de iluminação espiritual conhecida como os Oito Ramos do Yoga, estruturados por Patanjali e amplamente trabalhados pelo misticismo Thelêmico,  funcionando como dietas: são renúncias conscientemente autoimpostas para que possamos nos perceber sem certas influências que nos são habituais, mas que podem nos prejudicar, restringindo de algum modo a formulação de nossa Vontade. Os Yamas devem ser praticados com situações que nos causam ruído e que distraem daquela experiência do próprio eixo. Por ex: se perco horas numa discussão na Internet, o Yama pode ser ficar alguns meses sem acessar redes sociais. Se eu sinto que minha raiva me atrapalha, o Yama pode ser não brigar, ou me afastar de situações ou pessoas que me incitam a isso, durante um tempo.  Se eu sinto que o álcool está me possuindo, o Yama é parar de beber. 

Note que nenhuma dessas coisas é boa ou ruim em si mesma, mas se elas não estiverem dançando na órbita da verdadeira vontade, se tornarão obstáculos, demoníacas. A característica de uma força demoníaca é sua tendência à compulsão – é assim que ela submete a nossa consciência. São esses demônios que nos possuem quando somos tomados por reatividade. Cada um deles precisa ser convidado a também servir na Grande Obra. Com o treino, não é tão difícil perceber se uma influência está trabalhando alinhada à nossa verdadeira vontade: quando está, ela costuma desaguar em criatividade, insight, originalidade. Quando não está, costuma desaguar em repetição viciosa, pobreza existencial e sofrimento. (Esses sinais de reconhecimento refletem apenas meu atual estado de compreensão, não devendo ser literalizados pela pessoa leitora, que deve buscar tirar suas próprias conclusões, a partir de sua própria prática, sobre como se manifesta a verdadeira vontade).

A prática do Yama é como uma dieta e um banho, e enfim um instrumento precioso de purificação. Ela nos permite perceber como nós atuamos diante daquilo e daqueles que nos sequestram de nós mesmos. Permite perceber nossos vícios, nossos laços kármicos que nos fazem repetidamente, talvez por incontáveis eras, sair do próprio eixo.

O maior norte da purificação é outro conceito que precisamos limpar de cristianismo e transformar à luz de Thelema: castidade. Castidade, para nós, Thelemitas, significa aspiração contínua àquele propósito maior do autoconhecimento e realização da Verdadeira Vontade: o que quer que faça, lembre-se da Grande Obra. O que quer que faça, esteja presente, consciente, se descobrindo no seu fazer. 

Lembre-se do Santo Anjo Guardião: seu próprio gênio, a sua experiência pessoal do Divino. Independente de como você o conceba, deseje sua união o tempo inteiro. Se não tiver nenhuma ideia de como fazer isso, lembre-se das vezes em que se apaixonou e reconheça o Anjo como estando por trás de cada uma delas. Se te for mais conveniente, tal como uma criança, imagine-o como sua mãe espiritual, ou seu pai espiritual. Talvez o Liber Astarte possa te ajudar. Da forma que for, deseje o tempo inteiro. Enquanto trabalha, enquanto conversa, enquanto come, enquanto transa, enquanto briga, até enquanto dorme. Ore com fervor ao Anjo até que você possa sentir seu coração palpitar. Perceba sua presença como uma visita importantíssima que está para chegar na sua casa, sem hora marcada. Procure com reverência, mas sem paranoia, seus sinais no mundo. Se dê conta que a falta Dele é uma excelente oportunidade para sentir saudade e valorizar Sua presença. É comum esquecermos desse objetivo maior, então estabeleça desde já sua prática espiritual como simplesmente se lembrar. Não subestime essa prática. Crowley, em seus “Pequenos ensaios em direção à verdade”, resumiu: “A memória é feita da matéria da própria consciência”. 

Lembrar-se e voltar para a consciência da Grande Obra, para nós, é castidade. E purificação é retornar para essa prática. Essa é a condição que realiza o nascimento do divino em nós, sobre o que versa o Primeiro Grau da O.T.O.

Além disso, no Primeiro Grau é forjado um elo mágicko entre a pessoa iniciada e a Ordem. Eu aprendi informalmente com meus iniciadores a metáfora de que esse elo é como uma tatuagem no corpo sutil: vou tê-la comigo enquanto durar minha existência. Nascemos para uma linhagem espiritual, que é comumente chamada de Corrente 93 e ritualizada nesta forma específica que conhecemos como Ordo Templi Orientis. Para quem ainda possa estar formulando a vontade de nascer nesta egrégora, talvez esses conselhos sejam úteis: lembre-se que a iniciação em Thelema representa simultaneamente o maior compromisso consigo mesmo e com o desenvolvimento espiritual da humanidade. Que isso significa começar a dedicar sua vida a Magia como ferramenta de autoconhecimento. E que a liberdade, a sua e a de todos, é o bem mais precioso que pode haver. Por fim, faze o que tu queres e “Vinde adiante, ó crianças, sob as estrelas, & tomai vossa plenitude de amor” (AL I:12).


Autor: Frater Bodhicitta

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