Aniquilação

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“[…] Finalmente, o ciclo é fechado pela reabsorção de toda individualidade ao infinito. Termina em absoluta aniquilação que […] pode na realidade ser considerada como um equivalente exato para todos os outros termos, ou (postulando a categoria do tempo) como formando o ponto de partida para novas aventuras do mesmo tipo”

(Confessions of Aleister Crowley, p.700-704, a respeito dos graus da O.T.O.)

“Aniquilação” é um acontecimento espiritual difícil de viver na pele e transmitir em palavras. A minha experiência pode ou não fazer sentido para quem lê essa mísera tentativa de organizar a vivência da alma numa narrativa.

Esse termo é usado por Crowley para descrever o coroamento da Tríade do Homem da Terra na O.T.O. E por que ele compôs o sistema iniciático da Ordem dessa maneira? Porque aniquilação é o corolário da Natureza. Cada coisa contempla sua intimidade mais secreta apenas quando sua própria manifestação foi aniquilada: efetivamente, quando essa coisa não mais é. “O Perfeito e o Perfeito são um Perfeito e não dois; não, são nenhum.” (Liber AL I:45). Essa é a vontade pura, o bebê no ovo, a base da mente antes de ela projetar imagens no mundo.

Projeções são nossas expectativas inconscientes que fabricam e confirmam realidade a partir de nossas fantasias. Aniquilação acontece, na prática, através de uma retirada radical de nossas projeções lançadas sobre as outras pessoas e sobre nosso ambiente. Com isso, se desfaz o sonho que vínhamos sonhando. O mundo, como o entendíamos, é destruído.

O baile do nosso sonho pode parecer ter muitos dançarinos, mas seus mestres são apenas um casal de anjos demoníacos: Esperança e Medo. O sucesso em bani-los, em menor ou maior escala faz, num primeiro momento, que as projeções investidas no exterior retornem para o si mesmo como uma bomba nuclear de energia: quando acordamos de um sonho, com isso nos é revelado a dinâmica do sonhar. Esse é um momento iniciático que pode ser muito crítico, pois ao nos percebermos como autores de nossas fantasias, pode ser que o mundo “de fora” se torne um deserto. Tudo aquilo que um dia acreditamos se torna vão. O si mesmo, no mundo “de dentro”, inundado por tanta energia do súbito recolhimento das projeções, pode apavorar-se e mesmo enlouquecer, pois será aquebrantado por aquela imensa carga, que se expressa na forma de afetos (sensações e emoções) e imagens (discursos mentais, crenças, imagens oníricas etc) profundamente contraditórios entre si. A loucura pode vir de muitas formas, mas duas delas são clássicas: um apequenamento impotente diante do mundo, ou um agigantamento maníaco (hybris). E cada uma dessas respostas ainda reflete a escravidão a um daqueles grandes anjos demoníacos: Medo ou Esperança.

Mas na contemplação de tamanha desilusão temos a chance de ver o trickster Mago trabalhando como demiurgo além do véu do Medo e da Esperança: quando nos desiludimos com uma pessoa amada e não estamos mais distraídos pelo seu encanto, somos deixados a sós com o nosso próprio amar. Quando renunciamos, nos deparamos com a ilusão do ter. Quando paramos, nos deparamos com o nosso fazer. A aniquilação, como a libertação, só é possível vivendo ao máximo e então se desiludindo.

A desilusão de quem nada tentou é estéril, porque seu caminho não formulou a força da própria vontade. Mas uma desilusão intensa, depois de muita devoção – essa sim, pode ser eficiente como caminho de libertação. Quantas vezes precisamos lutar contra o nosso Anjo, para enfim perceber que precisávamos perecer em seu braços?

Sobre esse processo nada romântico, só consigo me lembrar da alusão do Liber Cheth: “Pois se tu não fizeres isto com a tua vontade, então Nós o faremos não importando a tua vontade” (vers. 11). O amargo néctar da desilusão é a condição para o “Sacramento do Graal na Capela das Abominações”. E também: “E esta é a Ira de Deus, que estas coisas devam ser assim / E esta é a graça de Deus, que estas coisas devam ser assim” (vers. 17-18). Desse modo, poderá ser contemplado face a face o seu verbo criativo, que sempre foi seu e sempre será.

Talvez seja clichê essa imagem do arqueiro zen, mas somos como um arqueiro que lança uma flecha: a seta da vontade voa adiante e o observador pode facilmente perdê-la de vista. A flecha sempre estará além. Vivemos o mistério da vida dessa forma: todo mundo faz coisas a perder de vista, que não compreende muito bem. Criamos e nos envolvemos com situações que nos superam. Relacionamentos, trabalhos, ordens iniciáticas… a flecha quase sempre está lá, desbravando o caminho adiante, enquanto nós, observadores, ainda estamos aqui. Ficamos tentando, oraculares, prenunciar o sentido, alinhar nossa consciência ao norte da vontade, para ter um vislumbre de onde ela vai dar.

A minha impressão é que há uma janela de oportunidade iniciática em que podemos perceber que a flecha da vontade não atinge alvo algum, nem vai para lugar algum. Se não percebermos isso, viveremos na busca de alvo em alvo. Mas a flecha sequer encontrou resistência do ar, perdendo-se no infinito do Espaço. A flecha some de vista. A flecha se torna inútil; o observador nada mais observa, então também se torna inútil. Mas existe o flechar.

Eu estico o arco, eu miro, eu ondulo formas temporárias, e isso é tudo. Importa, essencialmente, o que eu crio? Essa é a única pergunta ética derradeira que preciso responder: depois de aniquilado o sonho, o que eu quero criar para minha bolha de sonhar? Há um tipo de fazer no qual eu regozijaria diante de seu deslizar na eternidade sideral, um estado de espírito no qual eu almejaria estar e ali fazer para sempre, gerando assim, quase que num acidental derramar de cores sobre a tela, certas formas temporárias, desiludindo-me sobre todas elas?

Essa é a verdadeira vontade.


Autor: Frater Bodhicitta

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