Consagrações

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A seguir, eu mostro como melhor realizar o seu objetivo na eucaristia da vida. [A alma] participa, por assim dizer, de sua própria divindade em toda ação, mas o faz de forma especial através do sacramento típico do casamento, entendido como a união voluntária com cada elemento do seu ambiente

Crowley, A. Confessions of Aleister Crowley

No sistema iniciático da O.T.O., Consagração é a operação de magia que acontece àquelas pessoas iniciadas no Segundo Grau: o Grau em que a pessoa experimenta a Vida. Previamente, esbocei impressões totalmente pessoais sobre os Graus seguintes a este, nos artigos: Devoção (a morte), Exaltação e Aniquilação.

 Mas, afinal, pessoas iniciadas e não-iniciadas, todos nós não experimentamos a vida? Sim e não: existe uma vida secreta reservada à experiência sutil, e esta Vida é a marca da Iniciação. Tal sutileza, como nos ensina o Livro da Lei, ensina a potência do gozo: “Sabedoria diz: sê forte! Então tu podes suportar mais prazer. Não sejas animal; refina teu arrebatamento! Se tu bebes, bebe pelas oito e noventa regras da arte: se tu amas, excede por delicadeza; e se tu fazes algo prazeroso, que haja sutileza ali!” (Liber AL II:70).

Para que possamos gozar das delícias (e das dores) da sutileza e suportar cada vez mais êxtase, é preciso ter uma base forte. Essa base pode ser resumida como corpo. Esse corpo, por sua vez, pode ser desdobrado como corpo físico (terra), corpo mental (ar), corpo emocional (água) e corpo do desejo (fogo). Se esses corpos não estiverem disciplinados, integrados e reunidos à luz da Verdadeira Vontade, estaremos condenados aos humores dispersos de cada um deles: o apetite e a inércia da terra; a inquieta biruta soprando ao vento; o sentimentalismo da água e a ferocidade apaixonada do fogo.

É preciso aprender a gozar com o corpo todo. A vida pode ser um jardim orgástico. Como, para nós, o corpo é a manifestação do espírito, estamos falando de aprendermos a nos saciar espiritualmente. Quando aceitamos os fenômenos da Vida como eles são, compostos de dor e delícia, aos quais nos tornamos reativos a partir de nossa aversão e avidez, podemos aprender a senti-los plenamente e nos equilibrar neles com a sabedoria de malabaristas: como o Atu I do Tarô, o Mago, delicadamente suspenso no seu eixo.

O crescimento em sabedoria transforma cada experiência num Sacramento. Por isso Crowley se refere ao casamento – enquanto união com nossas pessoas e circunstâncias amadas – para aludir à prática desse Grau. Essa é simbolicamente a busca pelo Graal. Nossos casamentos circunstanciais são fractais daquele casamento maior, com nosso Santo Anjo Guardião: a conexão com a alma, entronada em nosso coração, que ao transmutar ricamente a dureza dos fatos em experiências, torna-se um manancial nutritivo a nós próprios e àquelas pessoas ao nosso redor, graças a nossa luz, suor e sangue.

Tendo a sabedoria do gozo como um norte, o Grau da Vida na O.T.O. invoca sob a pessoa iniciada a energia da adulteza. Por isso, é preciso meditar sobre o que torna uma pessoa adulta. Nas ruas, se andamos com a visão sutil acionada, percebemos mais pessoas prematuras que maduras. Em se tratando de um adulto, três qualidades definidoras me ocorrem: sexo, trabalho e autocuidado.

Crianças podem viver e expressar sexualidade de várias formas, mas ainda não têm consciência dos impactos de uma vida sexual ativa. Igualmente, se tornam prematuras quando precisam muito cedo interditar a infância e se dedicar à responsabilidades do trabalho: seja o remunerado, seja o emocional, nos casos em que percebem ser preciso compensar a infantilidade dos próprios pais. Mas só o adulto tem de fato o poder de viver seus labores e sua sexualidade – todos os seus tesões, incluindo o sexo literal – sob a luz do autocuidado. A criança ainda não sabe cuidar de si, enquanto a pessoa adulta é aquela que aprendeu. A inteligência emocional é uma chave fundamental nesse processo. Nesse sentido simbólico, a idade cronológica importa pouco: há septuagenários que permanecem psicologicamente e espiritualmente infantis.

O Grau da Vida faz olharmos nossos aspectos infantis e como lidar conscientemente com eles. A idealização do paraíso da infância – para aqueles que tiveram boa infância – ,  ou o ressentimento da criança interior machucada – para aqueles que tiveram infância difícil – ou, ainda, as duas tendências ao mesmo tempo, ambas se tornam aqui perigosas fontes de fixação. O apego às fases iniciais do desenvolvimento humano (representadas na O.T.O. pelo Minerval e pelo Primeiro Grau) pode cegar às demandas da vida adulta: autocuidado, autorresponsabilidade e, finalmente, alteridade.

Observo de forma totalmente empírica que é costume haver algum ordálio iniciático no lidar com a criança interior durante este Grau. Ao menos comigo foi assim. Outras pessoas também relatam a vivência deste Grau com muita aridez, muito trabalho, muita disciplina, muito tédio e pouca inspiração. Meu palpite é que esses são os olhos da criança interior ressentida. Ela precisa ser escutada, cuidada e acalentada, porque na verdade ela é o nosso núcleo mais íntimo e também mais poderoso: a Criança é a potência do futuro, só ela nos oferece renovação. Sua imaginação, seu faz-de-contas, seu animismo, seu brincar são a substância da própria Magia. Por outro lado, em seu aspecto sombrio, ela nos manteria presos e demandantes na forma de sua majestade, o bebê.

A força da regressão – isto é, a gravidade da infância – sempre vai nos atrair e é importante que dancemos com ela. Porém, quão mais inconsciente isso se der, mais nos tornamos possuídos por nossos aspectos faltosos, mimados e ressentidos. Manifestar a Criança Divina nunca é algo já posto, e sim uma construção. Para isso, é preciso que nos tornemos adultos espirituais, fecundadores e gestadores de nós mesmos – pai, mãe e cuidadores do Si Mesmo.

A pessoa adulta provê para si mesma. Portanto, pode prover também para o grupo. Aprendi essa metáfora informal com meus iniciadores e gosto dela: a pessoa no Segundo Grau tem o lugar social do guerreiro e/ou do caçador da tribo. Sua função se torna militar quando necessário, mas se fundamenta na manutenção do grupo: ir selva adentro prover alimento, dando ao grupo carne de caça; providenciar lenha para que todos estejam aquecidos nas noites frias; arrumar o Templo, carregar caixas, cozinhar, varrer o chão… enfim, Servir.

O sentido da nossa Ordem é Serviço, e isso não é tão diferente de perceber conscientemente como são nossas relações na vida adulta. Estamos sempre a serviço de algo: de um ideal, de um vício, de um trabalho, de alguém. O desafio de nossos(as) iniciados(as) é, por um lado, treinar o ego a serviço da Iniciação na sua própria Verdadeira Vontade e, por outro, colocar-se a serviço da Iniciação da humanidade. A mente sensível vai perceber que não são processos tão diferentes assim.

Esse é um dos sentidos para Consagração: encantar um objeto para que ele expresse fluidamente seu propósito, tornando-se assim um veículo eficiente de sua finalidade. O objeto, nesse caso, é a própria pessoa Iniciada, e o objetivo aqui é a expressão de seu próprio querer. O encantamento em questão é destinar cada uma de suas partes à sacralidade da Grande Obra. Obra acentua a dimensão do labor, o que pode nos levar a uma instintiva tensão – mas nós também deveríamos chamá-la de Grande Gozo, nos inspirando o relaxamento e saciedade dos amantes.

É muito importante que a pessoa iniciada aprenda a gozar no seu labor. Que todos nós possamos realizar o Grande Gozo! Como toda a Vida se renovaria! Eventualmente, poder inspirar e transmitir esse prazer é o poder que fundamenta a magia da comunhão, presente, por exemplo, na eucaristia da Missa Gnóstica. Podemos reconhecer essa magia acontecendo apenas em ritos circunstanciais, ou podemos usá-los para nos lembrar que a Vida é o supremo ritual e que eucaristia é dividirmos o sagrado que descobrimos simultaneamente em nós mesmos e nos outros.  

É simples assim: não há maior sacramento que amar e sermos amados. Que essa realidade não seja pervertida por nossas escravidões emocionais, sentimentalismos ou tolices. O verdadeiro amor é aquele pela potência de viver. E com que força manifestamos nossa vontade na Vida quando amamos e somos amados! Que essa simples verdade possa ser cultivada como ação, simultaneamente poderosa e  amorosa, raiando no coração de cada um de nós. Fazei isto, e nenhum outro dirá não. Não existe Lei além de faze o que tu queres.


Autor: Frater Bodhicitta

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