Devoção (a morte)

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(…) prossigo para o clímax de sua carreira na morte e mostro como esse sacramento consagra (ou melhor, coloca seu selo) no procedimento anterior e lhe dá um significado, assim como a auditoria da conta permite que o comerciante veja suas transações do ano em perspectiva.

Confessions of Aleister Crowley, p.700-704, a respeito dos graus da O.T.O.

No sistema de consecução proposto pela O.T.O., “Devoção” é simultaneamente a qualidade invocada sobre aqueles que passam pelo Grau da Morte e um sinal sutil de reconhecimento de quem vive a natureza desse Grau, como invocado na Tríade do Homem da Terra. Esse artigo é a pálida tentativa de trazer uma imagem entre muitas a respeito dessa vivência, que é fundamentada no Fogo alquímico que catalisa transformações. Você pode encontrar impressões pessoais como essa, sobre momentos iniciáticos posteriores da Ordem, em textos anteriormente publicados: Exaltação e Aniquilação.

“Inflama-te a ti mesmo em oração” é uma das mais simples e definitivas técnicas de Magia e Misticismo. Que isto esteja gravado a ferro e fogo no coração. Como um viajante que tenta voltar para casa, mas foi arrebatado pelas tempestades elementais que o naufragaram em ilhas remotas, acender diligentemente esse Fogo com folhas mortas, gravetos e troncos secos é vital para se aquecer e eventualmente assar comida. A faísca deve ser cultivada com zelo e o com ar de seus pulmões. No começo, pode ser uma centelha duvidosa, um espasmo crepitante de entusiasmo velado na rotina de trabalho árduo e mera disciplina. Mas, em algum momento, a força & vigor desse fogo corretamente cultivado poderão fazer a pessoa iniciada exclamar: “Sim, eu gritei para O Santo, e da Tua centelha eu acenderei ao Senhor uma grande luz; eu queimarei através da grande cidade na terra velha e desolada; eu a limparei da sua grande impureza”
(Liber LXV, cap. 5, vers. 3).

O Fogo é nosso ardor espiritual. Para a alquimia, que é uma arte do fogo, só ele produz de fato transformação da matéria prima, ou seja, de nós mesmos. Você pode lustrar a matéria-prima com água, limpando-a de excessos e sujeiras, mas isso não a altera em si mesma. Você pode consagrar com equilíbrio as partes das quais a matéria-prima é composta, de modo que ela obtenha o poder de uma ação precisa e balanceada, mas isso apenas a reorganiza, também não a altera em si mesma. Mas se você queimá-la, ela vai suar, febril, suas partículas se agitarão, se tornará vermelha e pode ser inclusive reduzida a pó. Tudo isso pode, no mínimo, transformar o estado da matéria-prima, ou transfigurá-la para sempre. Para isso ser possível, você não pode ser morno, mas sim ardente.

Em Thelema, quando falamos em Morte, falamos em transformações profundamente íntimas. Duas coisas precisam ser de antemão entendidas: Primeiro, que Morte não é o final da estrada, mas uma curva a se perder de vista. Segundo que, no novo aeon, o exercício é que abracemos a morte não como a indesejável catástrofe que vai nos arrebatar – mas que desejemos por ela. A morte chega para todos, de formas literais e sutis, tantas vezes na vida: podemos ser suas vítimas ou podemos olhá-la de frente, como sujeitos de nossas próprias mortes. Simbolicamente, o thelemita mata a si mesmo muitas e muitas vezes, como auto-imolado Ankh-af-na-khonsu. Sua mão desfere o golpe da espada sobre seu próprio pescoço. “O Universo é Mudança; cada Mudança é o efeito de um Ato de Amor; todos os Atos de Amor contém Pura Alegria. Morra diariamente. Morte é o ápice de uma curva da serpente da Vida: contemple todos os Opostos como complementos necessários e regozija-te” (Livro de Thoth, sobre o Atu “A Morte”).

Existem vários processos alquímicos abarcados pela Morte. Cito alguns: 

Mortificação (quando precisamos encarar impossibilidades, os limites, os términos, a velhice e a morte física prenunciada);

Putrefação (quando o cadáver já morreu e precisamos encará-lo, malcheiroso, na forma de nossas velharias se decompondo na sala de estar);

Desmembramento (quando estamos em cacos, fatiados, seja pela espada da análise ou pela tensão de opostos insuportáveis que arrancaram e arrastaram nossos membros para os quatro cantos do mundo, e nesse estado não encontramos uma unidade ou coerência interior, por mais que a desejemos);Calcinação (ser morto pelo Fogo, quando a energia – que frequentemente aparece como pressão – está tão alta, que nos resta apenas nos entregar e nos reduzirmos a nossas ossadas).

Não sejamos românticos – nenhum desses processos é fácil. Se não for possível vivê-los com alegria e beleza, que haja ao menos coragem. Devoção se dá quando você se permite amar a vida como ela é, aceitando seus processos como são. Amar a vida e vivê-la bem é a antessala de uma boa morte. E se a vida nos exige principalmente vontade, a morte finalmente nos exige entrega (amor).

 Talvez então, com algum treino, passemos a rir junto à caveira dançante da Morte. Que delícia! As ervas daninhas são mortas; a Rosa pode florescer. Para as pessoas recém-iniciadas nos mistérios mortais, é importante lembrar que seus egos não irão vencer a morte, e que haverá muita morte porvir e que a chave dessa Iniciação está em aprender a como morrer. “Cinquenta são os portais da compreensão e cento e seis são as suas estações. E o nome de cada estação é Morte” (Liber 418, Introdução).  E ainda: “Ó tu, que és o mestre dos cinquenta portais da Compreensão, não é a minha mãe uma mulher negra? (Liber 418, aethyr UTA).

A “mulher negra” é uma imagem de Nossa Senhora Babalon: a Senhora da Morte e do Nascimento. “Cinquenta são os portais da Compreensão”, e compreensão significa ver com os olhos Dela, e cada estação dessa iniciação-morte é regida por Ela, a Deusa em cujo corpo dançamos a dança do Gerar e ser Gerado, do Matar e Morrer. É preciso estar conciliado com seus ritmos.

Peço agora perdão por um parágrafo de aridez cabalista, mas compreendo que isso possa soprar ar no Fogo de algumas mentes: sobre os Portais da Morte, a pessoa estudiosa pode descobrir inspiração preciosa na letra hebraica Nun (cujo valor numérico é 50 e, soletrado, 106). De Malkuth a Chesed (que, no mapa da Árvore da Vida, é última parada “abaixo do Abismo”), precisamos morrer desde Malkuth de Malkuth, Yesod de Malkuth, Hod de Malkuth… até Chesed de Malkuth – e assim sucessivamente, sefira a sefira, fruto a fruto, morte a morte, até morrermos por fim em Chesed de Chesed, o que totalizariam 49 mortes simbólicas. Em linguagem cabalista, isso representa nossa morte em todo o Universo da dualidade. A quinquagésima e definitiva morte é a travessia do Abismo, ao nos diluirmos totalmente em nossa Deusa (GUNTHER, The Angel and the Abyss, p. 239).

A Morte é o próprio combustível da Grande Obra. “Ó tu que és o mestre do mais alto ponto do Pentagrama, não seria negro o ovo do espírito? Aqui reside o terror e a dor da Alma e Veja! Até eu, que sou o brilho único, fico no sinal de Apófis e Tifão” (Liber 418, aethyr UTA)”. O brilho único da Divindade é o nosso amável Destruidor. Os beijos do Santo Anjo Guardião, que é um emissário de Babalon, vai nos corroer como uma doença fatal: “Como um ácido corrói o aço, como um câncer que corrompe totalmente o corpo; assim sou Eu sobre o espírito do homem” (Liber LXV, cap 1., vers. 16). Que dor! Que prazer!

Existe um ponto muito importante na Iniciação da Morte como é especificamente ritualizada na O.T.O: a partir dessa Iniciação, as pessoas Mestres Magistas adquirem o poder mágico de Iniciar outras nas energias da fecundação, nascimento, vida e morte. Por que isso é possível? Porque morrer também é gerar. Do ponto de vista do nosso ego, ele morre para que o espírito seja inseminado. Do ponto de vista do nosso espírito, o Todo acolhe aquele rio de vida que finalmente desaguou em si. (Em nós está o sangue derramado, em nós também está a taça que o recebe. Essa conjunção de atitudes é um matrimônio interior e um princípio de magia sexual). Do ponto de vista coletivo dentro da O.T.O., a morte é serviço aos outros, doando-se às Irmãs e Irmãos. “Mestre”, portanto, é aquela pessoa que aprendeu a aprender e, para a roda girar, precisa ensinar. Do meu ponto de vista particular, essa transmissão precisa se dar:

Concretamente (Plano da Terra): liderando e ensinando nossos rituais, costumes e tradições;

Emocionalmente (Plano da Água): acolhendo e manejando irmãmente processos subjetivos desencadeados em grupo ou privadamente;

Intelectualmente (Plano do Ar): fornecendo instruções e imagens mentais claras sobre nossos rituais e práticas;

Sutilmente (Plano do Fogo): especificamente, servindo como pessoa iniciadora e, genericamente, inspirando como for possível o cultivo daquele Fogo no coração das Irmãs e Irmãos, para que eles possam eventualmente experimentar e transmitir essa Devoção. 

Esse é parte do mistério da renovação. É o princípio do que os alquimistas chamam de Elixir da Imortalidade: o bastão precisa ser passado para a próxima geração. É essa dinâmica que se estende além do túmulo, essa luz que prossegue, ziguezagueando como Serpente e eternamente se transformando, persistindo mas se modificando, como o amor de nossos Laços. A todas(os) Mestres Magistas do mundo, um abraço e beijo amoroso: Amor é a lei, amor sob vontade.


Autor: Frater Bodhicitta

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