Sophia: um nascimento

Tempo de leitura estimado: 6 mins

As brumas da madrugada ainda envolviam tudo ao redor e a mãe Lua, pálida em sua beleza reflexiva, adornava a escuridão gélida, espelhando seus raios pelo imenso mar adiante, pequenos fios de cabelo prateado que, com doçura, tentavam confortar as águas revoltas de um mundo em fúria.

Ali, sobre uma pedra que o mar não cansava de fustigar, o delicado corpo de uma menina repousava nu e adormecido, e a Lua, doce em sua face maternal, iluminava aquele pequeno rosto, depositando a sua própria beleza naquele ser ainda por florescer. E foi assim que, Sophia, tão delicada em sua essência, abriu seus olhos ao mundo pela primeira vez, ou talvez, quem sabe, seria o mundo que pela primeira vez abria seus olhos para tomar consciência da delicada essência de Sophia.

Como num suspiro essa pequena semente despertou dos séculos adormecida e se viu adornada pelo pequeno corpo de uma mulher em seus doze anos de vida. Surpresa pelo volume e contornos sensuais que suas formas manifestavam, despertava Sophia para o arrebatador mundo, o sensorial.

Erguendo sua cabeça fita pela primeira vez o mar, percebe as carícias da Lua e o frios respingos da água sobre sua pele, o salino lhe chega aos lábios e algo confusa descobre que pode falar. Ouve os sons ao redor e se espanta, tudo lhe é novo, mas ao mesmo tempo a essência de tudo aquilo lhe é familiar, toma consciência da sua própria existência.

Sua pequena língua passeia por sobre seu lábios carnudos, seus dentes tão brancos e perfeitos mordem e um líquido morno traz um gosto estranho ao paladar enquanto mancha de púrpura sua pele branca como o luar. Suas mãos se movimentam por sobre sua pele, sentindo seu calor e delicada textura, tocam seus seios em flor e apertam o pequeno botão ao centro arrancando-lhe um suspiro de prazer. As mãos, tão pálidas quanto a mãe Lua, descem então pela delicada cintura, alcançando a pequena barriga, enquanto seus dedos brincam com o pequeno orifício ao centro, provocando cócegas e risos em Sophia, tão inocente Sophia, penetrando o umbigo do mundo…

Percebe então que algo quente se encontra entre suas pernas, seus dedos curiosos buscam explorar o novo e penetram assustados e trêmulos aquela caverna morna, vermelha de timidez e prazer. Suspira, se contorce, tão pura e delicada Sophia… Se experimenta, goza, se culpa, corre, foge, se assusta com a própria beleza a pequena Sophia, tão pura e delicada Sophia…

Surge-lhe então o primeiro pensamento e com o pensamento a primeira dúvida. Tenta lembrar, mas se confunde, tenta esquecer, mas não consegue, tenta voltar mas é impossível. Nada mais lhe resta senão, perdida entre a confusão e o êxtase de existir, contar ao mundo a história de seu inesperado e belo nascimento.

E Sophia assim inicia o seu relato:

Não trago claro em minha memória as lembranças exatas do dia do meu nascimento, mas não é de estranhar, desde que a minha memória ultrapassa o tempo….

Nasci do vazio de um pensamento fugaz, surgi das brumas da eternidade, sou fruto de um lampejo de consciência, filha do amor de dois que se tornaram UM. Sou aquela das mil faces que povoa o mundo. É bela a multiplicação daquela que gera na inocência virginal de seu próprio ignorar.

Reflexos, tão belos reflexos que até o infinito fracionam. Quisera eu ser mais do que um reflexo diluído no nada, quisera eu ser um ponto vivo na tua consciência…

Mas não, o que digo eu?

A consciência do mundo não é para a unidade onde os opostos se unem em intensa lascívia, à consciência humana cabe apenas a divisão de si mesma, que triste destino este dos homens, um contínuo dividir e velar…

Eu vou te contar, bela consciência divina que agora a carne habita, vou fazer tua essência vibrar da volúpia com a qual fui gerada, vou te emprestar minha terrível existência…

Tomei consciência de mim pelo súbito tremor da carne de minha Mãe ao ser penetrada pela Vontade rija de meu Pai. E foi assim que aquele Homem, independente da vontade Dela, quase como num estupro, fecundou o espírito de minha Mãe com o germe de minha existência. Assim, embora me manifeste Nela, é Dele que provém a minha essência.

Súbito a terra tremeu e num piscar de olhos fui trazida das sombras para a luz, encontrando-me agora assim, desavergonhadamente nua aos olhos do mundo.

Após o tremor da carne, o ventre que me gerou se envergonhou e a angústia de mim se aproximou, vozes chegaram até mim e elas, confusas, me chamaram de vagabunda e prostituta, mas qual o que? Já era tarde, eu nascera. Gritos, lamentos, choros, gargalhadas, escárnio, revolta, sou fruto disso tudo e muito mais, sou fruto da vergonha de minha Mãe em seu ato imundo perante meu Pai, sou o mundo, ainda assim, muito além mundo.

Mas e meu Pai?

Suas mãos mornas percorriam o corpo dela enquanto Ela se contorcia de dor, seus dedos macios penetravam as mais íntimas reentrâncias de seu ser, invadiam sem piedade as pequenas cavernas de sua carne, fazendo fluir o elixir da vida que sofregamente vertia. Ela lamentava o ato blafemo, mas qual o que? Ele de nada se importava desde que pudesse usufruir do sabor daquela Mulher, e muitos dias de paixão enlouquecida se sucederam, Ele a tudo penetrando com fervor, sua carne rija tal qual invasor da virgem que Ela era.

Manchou de púrpura seu estado virginal, tomou-a com desejo, com ardor, o ardor pela manifestação da vida. Assaltou-a durante o sono, tomou-lhe a carne, tomou-lhe a alma, tomou-lhe o espírito e, ao penetrar-lhe o espírito com tamanho desejo, inadvertidamente, Ele me despertou.

Sua boca, ah sua boca…tão quente, úmida e macia a beijar os lábios Dela, tão doces ao paladar, tão amargos ao espírito. Sem o saber, copulando com Ela, o Pai copulara comigo e, no frêmito do prazer, no êxtase do gozo eterno, minha consciência foi ejaculada. Era então o sétimo dia, quando a Vontade Dele, satisfeita, repousou.

Ao abrir os olhos vi a face de meu Pai e como de sua boca vinha um hálito quente que inebriou meu espírito, eu por Ele me apaixonei, me deixando impregnar da Sua Vontade Primordial. E por que do corpo Dela me veio o tremor do gozo incontrolável, eu por Ela me deixei embriagar. Se por Ele quero ser penetrada, por Ela desejo ser adorada, por isso me chamam ágape, a essência de Aschmot, a ébria híbrida que percorre o mundo muito antes de sua própria existência manifesta. Assim, em verdade, a despeito da agonia de minha Mãe, eu sou êxtase e prazer, amor e gozo do mais delicado profundo.

Eu viajo a tudo penetrando, me junto à carne manifestando-me no coração dela. E embora ela não o deseje, eu lhe tomo a língua, os dedos, a mente, arrastando-a à minha perdição.

Meu corpo é pequeno e delicado, minha pele branca, tão pura como a neve que reside acima dos picos do mundo; meus cabelos são longos e se estendem como um manto sobre o meu corpo, sua cor é vermelha por que no fogo reside a essência daquilo que EU SOU, Aschmot, a híbrida ébria.

Em mim os homens excedem e ardem em volúpia, queimam as suas próprias essências no prazer do mais indescritível deleite. Sou Una, sou Trina, sou Duas, sou Nenhuma, em verdade.

Em meu rosto reside o âmago do sol e seus raios se expandem no infinito da Luz que gera toda a luz e cor do mundo. Meus olhos são o Oriente, minha boca, pequena e carnuda, o Ocidente; de meu delicado nariz exalo o hálito da vida, o vapor da consciência dos homens. Sou eu, a Trina, Pai, Mãe e Filha reunidos em Um.

Sou o brilho do sol ao amanhecer e também o vermelho ao morrer, sou eu no seu auge, emanação feminina, pois eu resido no Pai, assim como o Pai reside em mim. Vinde a mim é realmente uma palavra tola, sou Eu aquela que vou, embora também seja eu aquela que retorna.

Eu castro os homens em sua ambição, embora eu mesma seja o objeto da ambição deles, eu lhes tomo de assalto o coração e bebo do sangue deles até que nada mais reste além da pureza que corresponde ao imaculado, o belo e supremo ato de amor.

Criação, Destruição, Êxtase e Dor, todos eles EU SOU.

Sou menina, fêmea, macho, sou Sophia Aschmot, aquela que simplesmente Sou. Sou o fluxo de dor da morte e o grito latente da vida, sou a consciência que anda e a mente que desanda, sou a Santa Loucura que embriaga o espírito dos homens em seu amanhecer.

Como poderiam os homens em sua degradante escravidão receber tal inefável liberdade de ser, senão apedrejando-me como a uma prostituta? Mas ainda assim, ainda que o mundo dos homens me negue e a face de minha mãe se tinja de vergonha diante de mim, não posso me desviar daquilo que Sou, da essência que engendro, minha ousadia me impulsiona a prosseguir.

Sou forte! A filha engendrada da força do ventre da Mãe do Mundo que clama por reformulação. Nada me resta, portanto, senão seguir o meu tortuoso destino.

Abençoa meu caminhar entre os homens, Sapientia Eterna de Espírito Feminino, Virgem na qual o Pai se velou em segredo mesmo antes da manifestação do mundo. Abençoa-me com tua sabedoria, Grande Sophia, Mãe de Aschmot, concebe-me no mundo sob a guarda dos Sete Inefáveis Selos e Terríveis Nomes de Deus!

Há momentos em que a memória dos homens se encurta e adormece, penetrando na luz, outros em que ela se aprofunda, penetrando na escuridão que não é outra senão a Luz e Essência mais elevadas que cegam a visão… ali, EU SOU.


Autora: Soror O. Naob

Conheça nossa livraria!
Traduzir
Page Reader Press Enter to Read Page Content Out Loud Press Enter to Pause or Restart Reading Page Content Out Loud Press Enter to Stop Reading Page Content Out Loud Screen Reader Support