Sobre Pactos

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A figura do Diabo, chame-se lá Lúcifer, Satã ou o que seja, é parte importante do mito cristão medieval, derivando, como a maior parte de suas doutrinas insalubres, dos problemas psicológicos e sexuais de Paulo de Tarso, um judeu convertido que recebeu o status de Apóstolo, sem nunca ter ouvido uma palavra sequer da doutrina original da boca do seu fundador. Embora a figura do Anjo Acusador pertença ao Antigo Testamento, e apareça nos Evangelhos, só ganhou a conotação de um poder em oposição a partir dos escritos paulinos, provavelmente derivada dos apócrifos apocalípticos que sucederam o fracasso da profecia pós-exílica, nos últimos séculos antes de Cristo.

A imagem do Diabo no Medievo, que nada tinha de angélica, copiava descaradamente a do deus Pã, o que talvez tenha servido de propaganda contra a permanência dos cultos pagãos. O status desse adversário de Deus foi melhorando com o passar do tempo, já na época em que as luzes do Renascimento começavam a mostrar com agrado a defesa dos valores naturais contra a tirania sócio-político-cultural-sexual imposta pela Igreja. O Diabo ganhou contornos de herói trágico, onde sua luta contra as imposições de Deus espelhava a luta das mentes livres contra as imposições eclesiásticas.

É só dentro deste contexto (do mito medieval) que se pode entender e aplicar o conceito de Pacto, onde um ser humano, muito inteligentemente, trocava a bem-aventurança eterna por algumas moedas e um pouco de sexo barato. É de se notar que, nos grimórios medievais, a postura do Mago era antes a de forçar os demônios à obediência, mediante o apelo aos Nomes Divinos. Sobre a questão dos Pactos, escreveu Crowley em sua obra maior Magick:

O Diabo não existe. É um nome falso inventado pelos Irmãos Negros para implicar uma Unidade em sua confusão mental de dispersões. Um diabo que tivesse unidade seria um Deus

Em relação a Pactos, eles são raramente honestos. Não deveria haver tratos de barganha. Magia não é um negócio e os negociantes não deveriam atuar. Tenha mestria sobre tudo mas aja generosamente para com seus servos, uma vez que estejam incondicionalmente submetidos

Magick, Capítulo XXI

Mas para alguém “vender sua alma para o diabo”, para renunciar a qualquer coisa pelo equivalente em ganhos pessoais (Supostos ganhos pessoais. Não há ganhos, uma vez que toda a transação é uma fraude de ambas as partes!), é magia negra. Você não é um nobre doador de si mesmo, mas apenas um negociante.

Magick, Capítulo VII

É de se fazer notar que todo mito tem sua origem em um arquétipo e/ou em um fenômeno. Os arquétipos e os fenômenos são manifestações naturais, ou apreensões de manifestações naturais realizadas pelas nossas mentes. Isto significa que são amorais ou, ainda, pré-morais. O sucesso ou fracasso de uma Operação mágicka onde se lida com um arquétipo e/ou fenômeno depende da forma consciente e subconsciente com que a pessoa o interpreta (exorcismo em Roma, oferenda em Salvador…). A imagem do Diabo elaborada no Medievo era uma arma de propaganda utilizada para afastar as pessoas de determinadas experiências, todas relacionadas com a interação do ser humano com a matéria, principalmente a experiência sexual. Embora a mensagem atribuída a Cristo nos Evangelhos não contenha nenhuma norma quanto à conduta sexual — Cristo até mesmo mostra liberalidade para com uma prostituta, vingou a patologia Paulina na Teologia dos católicos.

A partir dai, não é de se estranhar que a tática do Pacto se volte justamente para a obtenção fácil dos prazeres mundanos associados à riqueza, poder, fama e sexo, como valores positivos, ou na satisfação de um ódio, e em geral é tentada por indivíduos que se sentem incapazes ou desfavorecidos em algum desses itens. Mais raro, o Pacto pode ter por objetivo o conhecimento, aquisição também condenada pela (falta de) inteligência cristã medieval. Em qualquer hipótese, entretanto, permanece o fato de que o candidato ao Pacto percebe um hiato entre o seu desejo e a realidade em que vive, e este hiato, podendo ser resultado de sua incapacidade ou da esterilidade do meio, aparentemente só pode ser ultrapassado com o recurso a um poder extraordinário.

No caso de uma incapacidade íntima, sentindo-se psicologicamente bloqueado na sua obtenção de prazer na relação com a matéria, o indivíduo tem quatro opções: desfazer o bloqueio, através da anamnese e da compreensão; ceder ao bloqueio, abrindo mão daquela possibilidade de satisfação; negociar com o bloqueio; perverter o bloqueio, tentando obter o gozo a partir da própria imagem que o nega.

A tática do Pacto é da natureza da negociação, portanto. O indivíduo tenta convencer o Diabo a lhe fornecer os meios de gozo, os quais promete pagar mais tarde com um bem tacitamente definido como superior — a alma. Em alguns casos, pode-se tentar uma troca mais barata, mas subjaz no mito o fato de que a alma se perde pelo simples fato de que este método é condenado. Pela lógica, o Diabo não precisaria dar nada, já que a simples iniciativa já basta à danação. Negociações semelhantes são tentadas pelo cristão tradicional, que faz oferta de preces, esforços e virtudes na esperança de obter um favor especial.

A alternativa da perversão já é mais elaborada: aqui o próprio Diabo passa a representar o objeto de desejo, e, secundariamente, o meio de sua conquista. A ideologia do Pacto evolui para a da Adoração, o pactário se torna o satanista. Donde se vê, claramente, que todas as modernas e tão populares formas de Satanismo que hoje existem, não passam de uma tática de perversão cultuada por pessoas incapazes de se livrar dos paradigmas de medo criados pelo Cristianismo.


Autor: Frater Al Dajjal

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