Sementes

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I. Sementes de Vida

Planta peculiar, de sementes estranhas que crescem para se tornar árvores de ágape e seus frutos são doces e tem um nome bem simples “Amigos”.

Uma semente, é sempre bom lembrar, só tem valor pelo que pode “Vir a Ser”. . .

E também não se deve esperar que das sementes Azuis surjam árvores Cor-de-Rosa, das sementes roxas surjam arvores amarelas, das sementes de bolinhas cresçam arvores listradas… E assim por diante, visto que essas sementinhas possuem infinitas formas e cores.

Outros importantes princípios básicos da jardinagem são o solo fértil, a água pura, Luz do Sol e a nutrição adequada.

Parece simples…

E de fato é, mas a complicação de ser simplesmente humano pode transformar o solo mais fértil em deserto, a água mais pura em ácido sulfúrico, a luz do sol em incêndio e o alimento em veneno.

II. Duas Sementes

Era uma vez uma garotinha que vivia dormindo, ela não queria acordar, pois seus sonhos eram doces e infantis.

Ela sonhava que podia voar, desaparecer e viver pra sempre no nada.

Chaos, em sua sabedoria de pai, decidiu que não podia esperar mais, pois sua filha seria devorada adormecida pelo senhor do tempo. Então, numa das raras vezes que a menina acordava para beber água ele a presenteou com uma bela caixa dourada, e acomodadas em seu interior sobre o mais fino veludo azul estavam duas sementes, esferas perfeitas, uma transparente, quase branca como neve ou gelo e a outra negra, escura como o sol á meia noite.

Ao olhar para seus pequenos tesouros ela finalmente despertou, havia uma vida a sua espera e os sonhos podiam esperar…

Ela foi até o jardim, fazia tanto tempo que não ia lá, o lugar estava vazio e desolado e ela sentiu medo do senhor do tempo, afinal ele podia devora-la a qualquer momento…

Mas havia muito o que fazer e ela tratou logo de esquecer o assunto, apesar do estado deplorável do jardim a terra ainda era fértil.

Sem demora tudo estava pronto, o que antes era apenas desolação tornou-se o útero aconchegante que agora estava preparado para receber as preciosas sementes.

Era chegada a hora do plantio…

III. A semente translúcida

O Jardim estava pronto, a terra preparada e haviam dois nichos cavados cuidadosamente, um ao lado do outro, ambos decorados com cristais.

A semente translúcida era de natureza feminina, e se deitou sobre a terra, sorrindo pura e brilhante. Seu crescimento fluido e rápido alegrou a garotinha, e ela não sentia mais medo ou sono. Rapidamente a semente se tornou uma árvore, seu tronco alvo e forte sustentava numerosos ramos cobertos por milhões de folhinhas que pareciam cristais e seus frutos eram de pura alegria e afastavam o sono.

A garotinha estava feliz só por poder cuidar de suas árvores.

Mas..

IV. A Semente negra

A semente negra era de outra natureza, masculina e ao cair na terra, ela simplesmente gemeu, e uma garotinha que passara a vida sonhando não podia identificar se havia dor ou prazer naquela voz de semente, mas sua compreensão era suficiente para saber que aquela semente não estava tão á vontade neste jardim quanto sua alva irmã.

Ela demorou a brotar, o pequeno broto era sem dúvida belo, porém duro e impenetrável como uma noite sem luar, nem estrelas, a garotinha foi absorvida pela sua escuridão, e amou aquela beleza, sem nunca entender, simplesmente sentiu. A cada nova folha pequena, escura e dura como pedra, a garotinha chorava, pois odiava amar aquela escuridão e perder-se nela, entendendo tão pouco.

V. Paradoxo no jardim

A garotinha estava cansada e de novo sentia sono, queria seus sonhos bobos de volta, ou apenas o esquecimento, e aquela coisa escura vivia lhe pregando a mesma peça:

Às vezes enquanto cuidava da árvore clara e deixava a escura seguir seu curso, esta como se quisesse atenção criava a ilusão de ter crescido de forma milagrosa e a garotinha corria e ao olhar para a escura árvore notava que aquele brilho ilusório era apenas mais uma folha dura que caia e secava aos seus, apesar de ainda o outono nem ter chegado.

Um dia triste e desolada pela morte iminente da árvore negra, a garotinha adormeceu e ao acordar entorpecida pelo sono regou a árvore translúcida com o ácido corrosivo, do qual a árvore negra parecia gostar, pois sempre que era regada com ele soltava umas duas ou três folhinhas…

A árvore translúcida quase morreu e isso mataria também a garotinha, ela seria devorada pelo senhor do tempo, pois havia falhado em sua missão…

Mas as qualidades da árvore branca foram capazes de transmutar o ácido em nutriente, ela tinha esse poder por amar a garotinha e também a árvore negra, e assim ela tornou-se mais bela e mais forte, quase indestrutível na falsa fragilidade de sua transparência.

A garotinha sentia toda a dor da morte da árvore negra, e era uma dor agonizante, produzida pela morte lenta, o suplicio da roda.

E quando doía muito ela se sentava á sombra da arvore clara e chorava e a arvore tentava lançar seu brilho reconfortante sobre a escuridão, mas a garotinha já havia ficado cega de tanto se perder na escuridão e o pior é que nem havia se dado conta da própria cegueira. . .

O brilho branco não podia mostrar a garotinha egoísta faze-la ver que seu suposto cuidado com a arvore negra era na verdade agressão e violência.

Desejar ardentemente foi que ela crescesse foi justamente o que a sufocou…

Mas garotinhas sonolentas, cegas, doentes e egoístas não podem ver.

O pequeno broto negro, nunca chegou a ser árvore, á cada folha que caía a garotinha morria por ela, sem perceber que suas inúmeras mortes só aceleravam a morte da arvore.

E ela chorava cada vez mais, á medida que entendia que sua forma de amar é que matava, e não importava a intenção, pois a ação sempre a anulava.

Erro sem perdão.

VI. Recuperando a visão

Um dia, subitamente a garotinha voltou a enxergar e não pôde perdoar a ambiguidade e os paradoxos dos seus sentimentos e sempre que ela olha pela janela de seu quarto, onde agora passa o tempo entre dormir e acordar, mas agora os sonhos não são mais doces, e há um pesadelo recorrente, o buraco onde um dia quase houve uma árvore negra se transporta para onde deveria estar o coração da menina e ela sente a dor do vazio e acorda para ver que tudo ainda está bem, afinal a arvore translúcida sobreviveu, bela e inabalável e a menina sente que ainda pode continuar vivendo mesmo que a dor de olhar para suas falhas tão humanas, que causaram a morte da outra árvore tão querida, a saudades de algo que morreu antes mesmo de viver, e ainda assim seu ego despótico e ignorante a tornou tão cega que ela chegou ao mórbido ridículo de conservar um cadáver, em sua cegueira ela não via que nunca houve mais que a promessa de “vir a ser”, que nunca se manifestou.

Hoje ela não tem mais esperança de ver de novo sua árvore negra viver, e tenta crescer em sua dor, que vai ecoar para sempre, apenas para evitar a repetição dos mesmos erros.

E ainda:

“O que pode ser lembrado não precisa ser perdido”


Autora: Soror Bastet

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