O XIº Portal: O Sagrado Casamento Alquímico de Babalon e a Besta

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O Leão-Serpente origina Deuses! Teu trono, 
a exaltada Besta, nossa Senhora Babalon!

The Atu: Mnemonics – Tarot of Thoth

Existem fenômenos tão obscuros dentro da psiquê humana que eu sou levada a crer que cada fator humano é uma pequena caixa de surpresas, surpresas nem sempre muito agradáveis, dependendo do nível de consciência daquele que as observa ou que lhe sofre os efeitos. Sem dúvida nenhuma, para aquele de consciência mais elevada, aquelas surpresas são apenas fenômenos impessoais e previsíveis, compreendidos como oriundos de uma psiquê humana em luta por ascensão. Mas para aqueles de nós, cuja consciência ainda se encontra estritamente ligada ao mundo de maya, o fenômeno surpresa pode ser realmente desastroso para ambas as partes. Todo aquele que já percorreu ou percorre o caminho iniciático pode facilmente comprovar estas minhas palavras, Pandora é poderosa entre nós.

O que ocorre? Qual é o fenômeno que normalmente desvia o curso daqueles que ascendiam os degraus do Templo em direção a um bem maior?

Não há dúvidas de que a frustração parece ser o fator que inicia a rebelião e fica claro para todos nós que quanto maior o orgulho do iniciado mais susceptível ele é ao “mau tempo” provocado pela frustração, mas poderia isto ser suficiente para nos arremessar violentamente para fora do Templo? Eu acho que não.

A respeito de frustrações na trilha da iniciação eu me considero escolada. Durante todos estes anos em que venho trilhando o caminho da iniciação Thelêmica, eu já perdi o número de vezes em que me senti frustrada, fosse isto em relação a mim mesma, em relação ao outro ou à própria estrutura organizacional da Ordem iniciática da qual faço parte. Entre Kether e Malkuth há uma certa distância.

Posso afirmar com toda a certeza que o caminho de iniciação Thelêmica é um caminho bastante difícil a cujo final muito poucos irão chegar, e eu sequer ouso afirmar que Naob estará entre as finalistas!

Minha experiência pessoal me leva a acreditar que o processo de iniciação é um caminho em que a luz e a sombra interiores se debatem em constante conflito, e esta é uma batalha que não raras vezes alcança o seu ápice no caso de possíveis frustrações. É no calor desta batalha que muitos abandonam a meta.

Trabalhar e coabitar dentro de um grupo voltado para a iniciação e consequente superação da adormecida condição humana é uma das coisas mais árduas que eu já enfrentei na minha vida. Liderar tais grupos é uma tarefa ainda mais complicada, pois a sombra que está lá também se encontra aqui e é sempre necessária a mais rigorosa disciplina em direção à auto-vigilância para manter a paz e harmonia do Templo, tanto fora quanto dentro de nós.

Por inúmeras vezes, quando a frustração me tomou, eu pude evidenciar o fenômeno da Sombra se manifestar dentro de mim. Nestes momentos a mente parece ficar sob o controle de alguma outra coisa que não nós e constrói um mundo paralelo completamente fora dos parâmetros daquilo que constitui a realidade que nos cerca. Exaltando e criando novos pontos, traçando novas linhas, invertendo valores já existentes e dando origem a outros, a Sombra parece gerar uma ilusão a mais das vezes medonha que incita a uma rebelião atabalhoada e, em geral, de resultados desastrosos. É como um giro mental de 360º, de um segundo a outro, toda a realidade parece mudar diante de nossos olhos, o reverso se manifesta e aquela coisa nos atira para fora do equilíbrio, para fora do nosso próprio eixo e, em casos extremados, para fora do nosso próprio caminho. O desespero, a angústia e a ira tomam as nossas almas com tamanha violência e revolta que é necessário uma vontade férrea para colocar tudo outra vez nos seus devidos lugares e restabelecer o equilíbrio perdido tão necessário para prosseguir na senda escolhida.

Diante da violência de tal fenômeno eu sou obrigada a me perguntar se aquilo que em Thelema é conhecido como Besta não é exatamente esta Sombra reprimida e escondida em algum lugar da nossa constituição humana, aquele que não conhecemos dentro de nós mesmos.

Sem dúvida alguma, após todos os estudos de Jung e tantos outros que o seguiram, temos que reconhecer que a Sombra existe e é dona de um poder de inimagináveis dimensões. A Sombra tanto pode destruir algo em apenas uma pequeno, bem pequeno segundo, assim como, dentro do mesmo espaço de tempo, erguer o mais belo de todos os palácios, algo verdadeiramente bom para nós e para aqueles que nos rodeiam. O fato é que todo aquele que conseguir obter o controle, disciplinar essa “coisa” dentro de si mesmo, irá se tornar um deus-guerreiro invencível, e aquele que se permitir ser controlado por esta mesma “coisa” irá certamente se tornar o maior de todos os tolos.

Abandonando qualquer tipo de maniqueismo, não importando se para o bem ou para o mal, o incrível poder da Sombra está sempre lá, tal qual uma forte e poderosa besta capaz de nos tomar pela força da paixão. Ignora-la não irá nos ajudar, mas complicar ainda mais o processo, pois tudo o que a Sombra quer é ser vista e ouvida, quanto maior a resistência, maior a força contrária emanada com a finalidade de romper o obstáculo à manifestação. A Sombra afirma sempre com veemência: “Eu estou aqui!” e quem, dentre nós, será tolo o suficiente para negar a realidade dos efeitos de sua existência em nossas vidas? Uma vez a Luz manifesta, a Sombra, sua alma gêmea, lá estará, suas proporções em plena correspondência. Deus e Diabo, duas faces de uma mesma moeda!

Ainda dentro dos parâmetros da minha própria experiência, eu julgo que a grande dificuldade em lidar com este tipo de besta está não só no fato de que recusamos vê-la e aceita-la, mas no fato de que a “coisa” se manifesta e tenta nos controlar justamente naqueles momentos em que nos encontramos mais frágeis. Naqueles momentos em que sentimos a nossa sobrevivência ameaçada, seja isto sob os aspecto de um ideal que não conseguimos alcançar, sob o aspecto do risco iminente de vida ou qualquer outro aspecto que nos faça sentir frágeis. Portanto, a poderosa energia da Sombra está intimamente ligada aos instintos que nos impulsionam à sobrevivência, sendo cunho marcial, daí as violentas explosões quando da sua manifestação. E, neste ponto, seria bom que procurássemos conhecer a mitologia do deus Marte para que nos seja viável uma melhor compreensão da Sombra.

Vale ressaltar que a Sombra, apesar de besta desconhecida dentro de nós, é um fator essencial em nossas vidas, sem a qual, nenhum impulso em direção à construção de algo nos seria possível. A Sombra é a energia que coloca o carro em movimento, mas o que seria do carro sem um motorista hábil para dirigi-lo? Quais seriam os efeitos de um carro desgovernado, não só sobre as nossas próprias vidas, mas sobre a vida daqueles ao redor?

Podemos dizer que Júpiter deveria estar para o motorista do mesmo modo que Marte para a energia que coloca o carro em movimento. Assim sendo, nada de errado com esta energia, desde que bem direcionada. A Sombra é um manancial de poder que, quando bem trabalhado, nos proporciona a realização de objetivos almejados. Negar a existência dela ou atribuir conotações de cunho maléfico à Sombra é negar e amaldiçoar a nós mesmos.

A relação simbólica entre a Sombra e a imagem de um animal foi sempre utilizada desde tempos imemoráveis, seja através da imagem de uma serpente, de um bode, um leão, um dragão das profundezas, ou qualquer outro animal capaz de inspirar terror onírico. Esta relação onírica Sombra/Animal/Perigo surge da ideia de que os instintos são tão poderosamente avassaladores que podem nos dominar de modo bestial e nos transformar em verdadeiras Bestas, o que não está de todo incorreto.

Se relacionarmos a famosa Besta Thelêmica com a poderosa Sombra mergulhada nas profundezas escuras de nosso Hades, de cuja energia obtemos não só o impulso para sobreviver, mas também o impulso que nos permite criar e construir tudo aquilo que desejamos, podemos desenvolver um estudo sobre o Arcano XI — Luxúria — , Tarot de Toth, que pode nos auxiliar na compreensão da relação dos símbolos ali colocados com o nosso próprio processo espiritual, o movimento interior que impulsiona das trevas para a Luz.

É necessário compreender que o Tarot (ROTA) é muito mais do que um mero processo divinatório, é um conjunto de espelhos em que podemos visualizar fenômenos interiores, refletir estágios de nosso próprio crescimento espiritual. É na capacidade de refletir e trazer à luz aquilo que se encontra nas sombras que o Tarot cumpre a sua sagrada função de relicário da Sabedoria Arcana. Cada uma das cartas do Tarot, em especial os arcanos maiores, traduz um momento do sagrado caminho de ascensão em direção ao divino, o trilhar da iniciação. Cada um daqueles arcanos é um portal que se abre em direção ao maravilhoso e, assim chamado, mágico universo interior, o universo do ser em busca do Eu Sou.

Devido ao fato de que trabalha com símbolos, a linguagem do inconsciente, o Tarot não é um conhecimento fechado, restrito, algo do tipo, uma vez estudado pronto! já conhecemos Tarot!

Não, o Tarot, enquanto espelho, reflete um manancial de possibilidades e novos conhecimentos a cada momento, é um companheiro no qual o iniciado deverá se refletir, buscando a sua própria imagem até o fim dos seus dias, ou, como diria Crowley, até assumir a Coroa de Tudo.

Deste modo, os conhecimentos que aqui irei expor não devem ser encarados como definitivos, mas como um livre compartilhar de pontos de vista sobre uma fase da iniciação. Devem, todos aqueles interessados, buscar a maestria destes espelhos e através daqueles reflexos obter as suas próprias conclusões, alcançando, ao final, a maestria de si mesmos.

Uma vez isto explicado que os dogmas sejam abolidos e que eu possa prosseguir na minha livre explanação sobre o XI º Portal, o Portal Mágico da Integração daqueles dois em favor da encarnação do Supremo e Mui Sagrado Senhor Um.  Vinde adiante, ó crianças, sob as estrelas, & tomai vossa plenitude de amor.  (AL I:12).

Como o método representado em Luxúria tão bem nos demonstra, a Sombra — Besta — deve ser cavalgada por Nossa Senhora Babalon. Instintos sob o domínio do Supremo Entendimento de Binah. E que seja bem compreendido que o entendimento que minha Sagrada Senhora proporciona não advém da apreensão do intelecto racional, mas da apreensão sutil daquele que se doa à experiência, a experiência da vida, pois a Taça de Minha Senhora transborda do sangue dos Santos que por Ela e em favor Dela vivem e viveram.

O Arcano XI é um arcano que representa, como nos informa Crowley, uma fórmula mágico-física que nos possibilita alcançar a iniciação, que nos possibilita a realização da Grande Obra. Esta fórmula mostra um processo alquímico de destilação operado pelo fermento interno e a influência do Sol e da Lua. O tipo de energia da carta é do tipo primitivo e criativo, completamente independente da crítica racional.

Se prestarmos atenção no fundo da figura do Arcano XI veremos que o que se encontra lá representado é um desenho de intestinos humanos, qualquer consulta a um livro de anatomia poderá comprovar o que digo. O abdome, preenchido em sua maior parte pelos intestinos, foi sempre conhecido como a área dos instintos, uma força primitiva e criativa que não segue parâmetros racionais. Instinto e criatividade são qualidades assinaladas à Sombra pela ciência da Psicologia.

O estudo dos chakras localizados nesta área, Muladhara, Svadhistana e Manipura, poderá nos fornecer maiores informações sobre o tipo de energia que esta área dos instintos contém. Ainda em relação aos chakras é interessante observar que o nome do segundo deles, o Svadhistana, localizado no plexo hipogástrico, significa, O Lugar onde habita o ser.

Ao contrário do que muitos possam pensar, os intestinos não existem apenas para eliminar excrementos, mas cumprem uma importante função dentro do mecanismo metabólico, anabolismo X catabolismo. Isto nos permite absorver e transformar os alimentos ingeridos para que sejam utilizados, posteriormente, como energia para o movimento e bom funcionamento de toda a nossa maquinaria corporal. Portanto, em termos de ciência arcana, os intestinos cumprem uma função alquímica. Também, ainda dentro do âmbito da ciência arcana, as duas fases do metabolismo fisiológico estão associados a Chesed (Júpiter) e Geburah (Marte), respectivamente.

Se observarmos ainda com mais cuidado o fundo do Atu XI veremos que, por sobre os intestinos, flutuam 10 figuras que são como que “olhos” rodeados por traços circulares e vermelhos que foram desenhados de tal modo a expressar que o que ali se encontra é energia em movimento. Tanto o vermelho com que os “olhos” forma desenhados, quanto o vermelho dos traços em volta simbolizam a energia de Marte em atividade, catabolismo, transformação da matéria viva, a energia marcial da sombra sendo liberada.

Esses dez “olhos” são como que pontos de vista que estão em potencial atividade dentro da Sombra. Representam 10 Sephiroth, cada Sephirah um centro de consciência que nos possibilita um entendimento sobre o universo em formação, um entendimento passível de ser adquirido conforme alcançamos cada um daqueles pontos.

Observe-se que, na Sombra, aquelas 10 Sephiroth encontram-se fora de equilíbrio, elas estão dispersas e não constroem ainda uma árvore da Vida, elas são como que a promessa de um nascimento, uma possibilidade, um potencial de vir a SER. Um potencial que somente pode vir a ser plenamente desenvolvido com a ingerência do Entendimento de Binah, o cavalgar da Sagrada Babalon sobre a Besta. Somente Babalon possui a “chave” necessária à ordenação daquelas Sephiroth, possibilitando o surgimento de uma nova árvore da Vida, um novo nascimento. Uma vez Babalon cavalgando a Besta e ordenando as Sephiroth, uma Nova Identidade poderá se elevar das sombras de Hades, ou, deveria eu dizer, a Verdadeira Identidade se eleva das sombras, a Identidade do Deus que repousa adormecido dentro de nós, Horus. Pois a Sombra nada mais representa do que a nossa individualidade incorruptível, aquela individualidade que não foi corrompida pelas necessidades do ego social e moral.

Se nós olharmos mais uma vez o fundo da carta veremos que lá estão desenhadas mãos postadas como a pedir algo e também faces que foram desenhadas de modo a demonstrar uma espécie de imersão em sono profundo dentro da Sombra, flutuando nela como que em silêncio.

As mãos que imploram simbolizam a própria e contínua atitude da Sombra em relação a nós, solicitando a todo o momento a nossa atenção, o nosso despertar para a consciência da sua existência.

A Sombra é apenas Sombra e não pura Luz, apenas por que nós lhe recusamos a existência, nós a mantemos imersa na escuridão por medo ou vergonha daquelas características que não puderam ser corrompidas pelos valores do nosso ego social. As características que o ego não consegue adaptar à moral social são, portanto, inaceitáveis ao limitado entendimento de nosso intelecto, sendo mergulhadas na escuridão pela nossa recusa em aceitar aquilo que realmente somos. Não fosse esta nossa recusa a Sombra seria um intenso ponto de Luz nas nossas consciências. Como é dito pelos estudiosos, uma vez transmutada, a Sombra consiste em 99% de ouro.

A Sombra solicita ser manifestada na Luz, solicita pela sua própria transmutação e nascimento, a grande redenção, o Sol negro que viaja na noite de Amenti e que deverá ascender aos céus no renascer do novo dia, do Novo Mundo. Osíris ressurrecto na figura de seu filho, Horus. Não é dito que Osíris é um Deus Negro?

Somente através desta grande redenção, o redimir da nossa própria individualidade incorruptível, será possível trazer à Luz a nossa Verdadeira Vontade, realizar a Grande Obra do Deus que habita em nós.

As faces adormecidas, desenhadas no fundo do Atu XI, representam aspectos de nós mesmos que não conhecemos por recusar a dádiva da vida à nossa Sagrada Criança, seja por educação social, por medo de olhar o que se encontra dentro da escuridão, ou qualquer outra razão. A questão é que nós as mantemos lá, como que adormecidas. Estas faces representam conhecimento adquirido em outras encarnações, memória mágica de experiências passadas onde trabalhamos com afinco e disciplina em direção à Coroa acima do mundo.

Observemos que as faces são desenhadas de forma a expressar silenciosa sabedoria, sábios e não monstros é o que aquelas faces simbolizam. E nós deveríamos ser atentos o suficiente para notar que, coincidentemente, uma daquelas faces apresenta um “olho” sobre sua cabeça, o que poderia ser um símbolo do Chakra Ajna ou do próprio Sahashara em atividade, a energia de Marte elevada a um nível superior; o enlouquecido Marte já equilibrado em Horus, o Senhor da Batalha e da Conquista.

A cor do fundo da carta é, com pequenas variações de acordo com a qualidade da impressão, a cor do chumbo. O chumbo é o metal que para os alquimistas representava o peso da individualidade incorruptível, mais uma vez encontramos a relação com a Sombra.

O chumbo, sendo um metal pesado, foi, tradicionalmente, associado a Saturno, o deus que divide, que restringe. Sob o ponto de vista da Sombra nós somos os Deuses Saturno, pois fomos nós que a devoramos quando do surgimento de nosso ego.

Restrição é a palavra de pecado!

Nós não nascemos em pecado, mas nos tornamos pecadores quando nos permitimos devorar as nossas próprias crianças internas, as nossas próprias essências. Que triste destino este dos homens, devorar a si mesmos…

E é claro que, assim que a criança devorada puder novamente alcançar a Luz, ela tenderá a se vingar e “matar” o ego devorador, e aqui, provavelmente, reside o nosso mais íntimo e intenso medo em relação à Sombra, ou, deveria eu dizer, o grande medo do falso ego que nos controla. Quando o ego da nossa falsa individualidade relaxa a guarda, fazendo-nos sentir fragilidade, a Sombra se eleva. Ela se eleva zangada, com sede de vingança e conquista, a conquista do trono que lhe foi usurpado, da coroa que lhe foi roubada, isto sem dúvida nos assusta! Do medo apenas monstros e seres oníricos assustadores podem surgir, criando um infindável ciclo inconsciente de terror em relação a nós mesmos que apenas amplia o abismo entre os dois lados da nossa própria e natural constituição.

Os alquimistas buscam a transformação do chumbo em ouro tentando se livrar das restrições individuais impostas pela cultura social, a fim de alcançar verdadeiros valores universais.

O chumbo representado ao fundo do Arcano XI é o ponto da obra alquímica conhecido como negrume, portanto, a Sombra, representa exatamente este ponto à espera de ser transmutado em puro ouro. O chumbo simboliza a matéria impregnada de força espiritual, a possibilidade de transmutação das qualidades gerais da matéria em qualidades gerais do espírito. Recusar o chumbo é se negar à Grande Obra.

A Sombra, como a guardiã de nossa verdadeira individualidade, tem também uma estreita relação com a nossa Verdadeira Vontade e nos fornece informações precisas sobre a direção que ela aponta. Uma vez a Sombra transformada em ouro ela se torna um mestre de grande sabedoria em nossas vidas, e, pessoalmente, eu não vejo nenhuma outra saída para a descoberta e realização daquela Sagrada Vontade que não seja a reintegração daquilo que se encontra dividido na totalidade do Um. O retorno do filho pródigo à casa do pai ou, se preferirem outra fábula, Caim assassinando Abel e recebendo em sua fronte o sinal da iniciação, a marca da Besta, a marca do homem que reivindica sua parte na Obra da Criação, a Grande Obra. Redimir a Sombra é núcleo fundamental da Grande Obra para todo aquele que se diz Thelemita. E é neste núcleo fundamental que reside a grande importância da construção de uma Sociedade Thelêmica, uma Sociedade Verdadeiramente Livre onde a nossa individualidade seja aceita, onde possamos manifestar a nossa Verdadeira Vontade e nenhuma criança necessite mais devorar a si mesma para ser amada.

Babalon e a Besta aparecem na Carta da Luxúria na cor do ouro mesclado com pequenas porções de vermelho, estas figuras representam a conclusão do trabalho alquímico, como o próprio Crowley nos diz, Marte sob a influência de Chesed, uma Sombra equilibrada pelo cavalgar de Babalon, o Entendimento de Binah.

Um outro aspecto deste Arcano que fala em favor da obra alquímica é que a Besta possui sete cabeças. O sete representa a noção de mudança após a conclusão de um ciclo e após um renascer positivo. Representa o dia do descanso após seis dias de trabalho, o intervalo entre um final e um novo começo.

O Leão-Serpente, representado na cauda da Besta é um símbolo da Kundalini ascendida, indica aquele que, tendo finalizado o processo alquímico, se torna Mestre da Vida e da Morte. Pois o processo de transmutação do chumbo em ouro implica num completo ato de criação, o qual envolve, necessariamente, duas fases, morte e renascimento. Tanto a morte, quanto a vida, estão representados no casamento alquímico expresso no Arcano XI. Este Arcano simboliza o casamento espiritual entre Sombra e Luz, Chaos e Babalon. Assim como Chaos representa o estágio que precede a criação, a Sombra representa o estágio que precede a criação de nossa verdadeira individualidade, aquela essência real que se encontra tal qual feto ainda imerso no líquido amniótico, ovo imerso no ventre da Grande Mãe — a noite do inconsciente — , e inicia a sua viagem em direção à consciência — a luz do dia. Babalon segura firmemente as rédeas vermelhas da Besta com sua mão esquerda, uma expressão de controle absoluto sobre o poder marcial da Besta, inteligência divina no comando do instinto animal, a influência de Chesed sobre Geburah, pois o braço esquerdo é a representação de Chesed no microcosmos. Com sua mão direita, símbolo de Geburah no microcosmos, ela sustenta a Sagrada Taça da geração, o impulso de Geburah nutrindo e ativando o processo que ali se encontra.

Dentro da Taça vemos uma figura que novamente se assemelha a um “olho”, ou, como muitos prefeririam dizer, um óvulo, símbolo da vida prestes a se manifestar. A estrutura dentro da Taça está imersa em sangue, sendo nutrida pelo sangue que flui do ponto central ao redor do qual se encontram 10 Sephiroth, o que indica que aquilo que se encontra dentro da Taça de Babalon tem o conhecimento completo e perfeito do universo, o Senhor da Vida e da Morte, Horus.

Também é interessante observar que a figura dentro da Taça ou Útero de Babalon constitui uma décima primeira Sephirath, Daath, o que seria não só uma afirmação da perfeição assinalada ao número 11, como também uma exaltação da função de Daath como ponto de intercessão entre o mundo divino e o humano. Através de Daath, a emanação do espírito chega até Chesed, Daath, portanto, funciona como um portal tanto da vida, quanto da morte.

A iniciação na 11ª sephirah, quando levada a cabo de maneira a atingir o equilíbrio dos poderes da mesma, confere ao iniciado uma missão ou sentido de destino à qual se adiciona o mais completo desapego às coisas terrenas, o que faz com que o iniciado obtenha um incrível impulso para abrir caminho diante dos possíveis obstáculos à conclusão do seu objetivo espiritual. Não importando o custo ou os perigos a serem enfrentados, o iniciado segue adiante, tal é a certeza que possui em relação a seus próprios poderes, tal é a força advinda da completa aceitação do seu próprio destino.

Em Daath a alma alcança o ponto máximo de sua evolução, o pilar de sua própria individualidade pela união com o espírito, alcança a perfeição na justiça e a aplicação das virtudes não corrompidas por considerações do ego restritivo, adquirindo a mais plena certeza e confiança no futuro. Daath é a esfera da realização em seu significado mais supremo, conhecimento unido ao entendimento. Representa a Sabedoria Suprema associada ao Supremo Poder de Realização. Portanto, fica clara a associação deste estado de consciência com o Conhecimento e Realização da Verdadeira Vontade.

Dez cornos se encontram em volta das dez Sephiroth acima, no Arcano XI, símbolos do poder que emana daquele “Não-Nascido” sendo gerado na Taça de Babalon. Dez cornos, dez serpentes de sabedoria, o coro angélico de Daath, que são enviadas para regenerar o mundo. O nascimento de uma nova individualidade, a Sombra não nascida transformada em ouro em sua união com o espírito e manifestada na clara luz, a consciência da existência!

Muitas coisas ainda poderiam ser ditas a respeito deste Arcano, mas julgo que o que foi dito até agora já serve de base para uma busca da amplificação individual do entendimento sobre o Casamento Alquímico que ali se encontra representado. Seria também bom que o estudante buscasse o conhecimento do Caminho 19 da árvore da Vida, pois isto lhe ajudaria a ver melhor em clara luz.

O processo espiritual aqui exposto não é algo fácil, exige antes de tudo um desapego em relação a si mesmo e a aquisição do firme propósito de alcançar o objetivo independente de possíveis quebras de ilusões o que, afinal de contas, pode gerar alguma dor e medo iniciais. No entanto, à medida que se prossegue com firmeza de propósito, coração puro e livre da ânsia de resultados, um prazer indescritível vai tomando a alma, uma luxúria incomparável se eleva, a luxúria do encontro com o Amado e mais do que tudo, o encontro com a própria Vida, o paraíso revelado.

Não existe regra fixa e cada iniciado deverá estabelecer a sua, sem esquecer que isto é para Ela e jamais para si próprio. Julgo que uma atitude de doação ilimitada do ser ao amor pelo amor é necessária, mas, como já disse, não existe uma regra fixa.

O encontro com a Sombra revela a surpresa de um crescente manancial de sabedoria e aquele que pensa na possibilidade de encontrar um demônio ou uma monstruosidade na escuridão, irá se sentir atônito quando do seu encontro com Baphomet, o Pai do Templo da Paz dos Homens.

Ao início a Sombra se manifesta como que agressiva, tende a gritar, e um período de confusão temporária ocorre, como se não soubéssemos quem somos ou o que realmente queremos. Nestes períodos é necessário manter a calma e evitar a angústia, sentar-se apenas em silêncio e aguardar com paciência e ternura a poeira assentar. Pois a tendência do processo é fazer com que a mente dê como que um giro completo em torno do círculo, adquirindo ao mesmo tempo todos os pontos de vista sobre uma mesma situação, implicando em contradição. Se precipitar e tomar um destes pontos de vista como único é incorrer no erro da parcialidade e pode implicar na escolha de um rumo falso. Portanto, apenas espere, este é um grande exercício de paciência, mas aos poucos a observação atenta do todo nos leva a uma conclusão e uma escolha, cujo resultado nos mostrará o acerto.

Conforme a Sombra vai percebendo que nós estamos dispostos a acolhe-la e a ama-la, ela começa a baixar o tom e a diminuir a violência de sua manifestação, mostra-se como um amante apaixonado que sussurra doces palavras no ouvido do ser amado. Quando isto ocorre, inicia-se uma espécie de integração e ela é de tal monta que provoca no iniciado a sensação de estar casado consigo mesmo, experimentando a mais completa perfeição matrimonial, sendo macho e fêmea a um mesmo tempo. Com o surgimento e experimentação deste matrimônio, o iniciado se torna uma fonte de amor, paz e felicidade, ele se torna a fonte do Si Mesmo e passa a se desapegar do mundo de maya, o qual, julgava até então necessário á sua felicidade.

Este desapego deve também ser equilibrado e o iniciado, embora compreendendo o vazio existencial do mundo dos fenômenos, deve se disciplinar de modo a continuar interagindo com o plano de discos, compreendendo que este plano possui suas próprias regras e que quanto mais habilidade possa desenvolver no intercurso com ele, mais facilidades obterá na realização de sua Verdadeira Vontade que aos poucos irá se manifestando. Uma vez esta disciplina alcançada ele passará a interagir com o mundo, participando conscientemente da grande brincadeira de Lila e se deliciando com ela, embora nesta delicia não haja sequer sombra de apego.

Aos poucos o processo vai se purificando e novos passos vão sendo mostrados, fazendo com que o iniciado adquira confiança em si mesmo e vá se aprimorando na Maestria de sua própria Vida. Se obteremos sucesso na empreitada ninguém o sabe, mas se sucesso for alcançado, ainda assim, sucesso continuará sendo a nossa prova.

Que os bons ventos dos Deuses possam ser favoráveis a todo aquele que se dispõe a percorrer o caminho da sagrada edificação de si mesmo em busca da união com Yechidah, isto é tudo o que posso desejar.


Autora: Soror O. Naob

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