O Ordálio de Nephesh: a escravidão da alma sensual

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O corpo é o portal da Grande Obra. Sem observar conscientemente nossas sensações e o que emerge delas, nossos passos seguintes no caminho iniciático seriam toscos e frágeis. Aqui entra um dos desafios que provavelmente todas as pessoas iniciadas passam ou vão passar: as agitações da Natureza levantam-se como desejos nas nossas entranhas e pele e, com isso, é revelada a dinâmica de nossa avidez e aversão, enraizada em nosso padrão sensorial. Aqui começamos a prenunciar o “ordálio de Nephesh”: aquilo que escraviza a alma sensual.

O “ordálio de Nephesh” é, portanto, um tipo de experiência prevista de acontecer àquelas pessoas que estejam lidando espiritualmente com a imanência de seu corpo, a matéria que alicerça todo o caminho iniciático. Representamos essa etapa da obra como típica do elemento “terra”, sintetizada pela linguagem cabalista na séfira Malkuth.

Um pequeno glossário antes de seguirmos: “Nephesh” em hebraico significa literalmente “alma”, representando no mapa da Cabala hermética especificamente a “alma animal”. Para esse mapa, são cinco as nossas partes constituintes: Nephesh (alma animal, ou sensorial), Ruach (literalmente vento; a mente discursiva); Neshamah (a consciência da alma, ou intuição além da mente); Chiah (pura energia), e por fim Yechidah (puro ser). Nephesh é, portanto, nosso nível mais concreto, a nossa dimensão que experimenta o aqui e agora a partir dos cinco sentidos. Estamos lidando com aquilo que o platonismo chamou de aisthesis – palavra da qual deriva estética –, isto é, a fruição do manifesto.

O ordálio de Nephesh é a síntese do nosso jeitinho particular de ser vítima de experiências sensoriais. Alguns são obcecados pelo sexo, outros pelo álcool, outros pelo dinheiro, outros por relacionamentos sadomasoquistas, outros por poder, mas o cerne dessa diversidade é que a Serpente do Desejo é sempre passageira e insatisfatória e nos possui quando achamos possuí-la. Diante da urgência de nossos desejos, tendemos a ficar mais ou menos neuróticos, seja pelo caminho do excesso de controle ou pela entrega inconsequente. Precisamos integrar a ambiguidade do desejo sensual: ele é natural e também é uma miragem. É o diabo que escraviza e também uma instrução direta do Santo Anjo Guardião: só depende dos olhos da pessoa iniciada.

Num contexto da A∴A∴, Crowley, controverso como quase sempre, disse sobre esse ordálio:

É mesmo dito que para todo Neófito da Ordem da A∴A∴ aparece um demônio em forma de mulher para corrompê-lo (…) Eu acreditei então, e acredito agora, que o neófito é quase sempre tentado por uma mulher.

Magick in Theory & Practice, Apendix III

A despeito de seu evidente androcentrismo, machismo e heteronormatividade, vamos tentar olhar esse exemplo além da casca literal. Estamos diante de uma questão regida, simbolicamente, pelo Feminino. É muito importante que essa afirmação seja lida com cuidado. O que Crowley acabou nos apontando é o fenômeno psicológico da projeção: se nossa experiência do Feminino não for elaborada enquanto uma realidade psicológica, acabará espelhada inconscientemente em mulheres de carne e osso – e isso vai partir tanto de homens como mulheres. James Eshelman, em seu livro , concorda:

O real demônio com o qual o Neófito luta é interior. De todo modo, isso não previne que o ordálio se manifeste como uma projeção sobre um indivíduo ou o ambiente, se a real batalha interior não for lutada e vencida.

The Mystical and the Magical System of the A∴A∴, James Eshelman, p. 81

Mas por que afinal seria essa uma questão com o Feminino? Porque diz respeito a tudo que deriva simbolicamente de nossa “imagem da Mulher”. E aqui eu falo a partir de minha própria experiência e elaboração pessoal, e que cada um conclua por si: o demônio de Nephesh é inaugurado na nossa primeira infância, quando o bebê experimenta a mãe – ou a pessoa cuidadora, material e afetivamente – através da ambiguidade presença e ausência. Ora ela vai encarnar a Grande Mãe nutridora, doadora de vida; ora ela vai encarnar a Grande Mãe terrível, ameaçando o desespero do abandono. Quando bebês, vivemos essa realidade de forma absoluta e sensorial. Esse é o ponto inaugural em nossa imagem do Feminino: nosso próprio desejo é iniciado pela mater. Na presença e/ou ausência da mãe está a raiz de nossa relação sensual com a matéria e a base a partir da qual iremos gradualmente simbolizar “Mulher”, reconhecendo mesmo que inconscientemente nas demais mulheres (e também em você mesma) o Corpo da Deusa, de onde todos viemos. Esse processo de simbolização do Feminino vai se tornar cada vez mais complexo, à medida que descobrimos o ciclo menstrual e o mistério que ele inspira, assim como conforme descobrimos a sexualidade da mulher.

Em algum momento de nossa fase arcaica começamos a experimentar a dualidade através de uma bomba de sensações. A vida é naturalmente traumática, e nossa realidade mais prematura é estarmos sujeitos a essa overdose sensual difícil de integrar num todo coerente. Só poderemos tentar juntar as peças do quebra-cabeça ao longo de nosso desenvolvimento, através de um trabalho consciente – o trabalho de casar os opostos, que é a própria Grande Obra. Para a maior parte da humanidade, esse casamento nunca é feito e vive-se fatiado, em maior ou menor escala.

O ordálio de Nephesh é, portanto, a dificuldade infantil de perceber o Feminino inteiro, o que resulta em se ver rendido diante da dualidade primitiva que experimentamos: avidez e aversão, esperança e medo. Num nível psicológico, passar pelo ordálio significaria perceber na prática a simultaneidade da Natureza doadora e terrível: ela é a mesma, uma. Disso pode se desdobrar o insight que qualquer desejo ou experiência pode me dar prazer e dor ao mesmo tempo. Quando um objeto de desejo que nos é intenso tem sua ambiguidade realmente reunida, ele perde o poder de nos atropelar no giro da roda do prazer ou dor, pois passamos a enxergar através desse sofisticado jogo sensorial e emocional, que é um dos aspectos abusivos de nossa relação com o Samsara.

 A visão do quadro maior nos dá possibilidade de nos posicionarmos com maior clareza. Assim, percebemos simultaneamente a beleza e o horror das pessoas que amamos ou odiamos. Percebemos simultaneamente a beleza e o horror em nós mesmos. As ilusões do ordálio de Nephesh, que até então seduziam nossa ansiedade infantil de obter alívio através do nosso vício preferido, começam a ser flagradas e despidas de sua promessa. Passamos a descansar diante da contradição dos desejos. Sinal de sucesso aqui me parece o casamento de ora sustentar melhor a tensão (controle), ora gozar melhor (entrega) – ou a arte das duas coisas ao mesmo tempo. Esse talvez seja o caminho para que a perecível Serpente do Desejo comece a se transmutar na imperecível Serpente da Saciedade, aquela que se enrosca no coração do Adepto e que marca o Conhecimento e Conversação com o Santo Anjo Guardião. Mas não nos enganemos: ambas serpentes também são uma! O Anjo sempre está presente a nos guiar, mesmo com estranhas artimanhas. Também uma é a Rosa que inclui seus espinhos, cuja imagem nos lembra sensualmente, muito melhor que minhas tantas palavras, que a Obra floresce na manifestação desse Feminino inteiro em nós.


Autor: Frater Bodhicitta

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