O cristianismo, com sua frequente tara por sofrimento, viciou com mortificação o símbolo da cruz. No entanto, essa imagem tão rústica – simplesmente o cruzamento de alguns traços, sendo dois a versão mais simples – é muito mais antiga que a cristandade e muito mais rica que sua alusão ao Calvário. O empreendimento alquímico do novo aeon, que o Thelemita realiza em seu próprio corpo,frequentemente passa pela redescoberta e atualização de símbolos que sempre energizaram o inconsciente da humanidade. Essa redescoberta e atualização podem se dar em nossa relação com a cruz.
Um símbolo é uma unidade de comunicação que surge da interação entre inconsciente e consciente e portanto é também uma usina de transformação de energia entre essas instâncias. A cruz é talvez o mais eficiente símbolo da realidade espiritual do entrelaçar de opostos. Essa realidade espiritual pode exercer muitos efeitos quando experimentada pela alma humana: polarização, a angústia do dilema, o desmembramento da divisão, o peso da dúvida, a morte e a crucificação; mas também a capacidade de suportar contradições, de sintetizar, de manejar criativamente a tensão do diferente, de gozar com a novidade que se apresenta ao eu na forma de uma oposição e, por fim, a possibilidade da ressurreição. É verdade que sem passar pela crucificação – a morte da rigidez do ego pelo aquebranto que a vida traz – não poderia haver ressurreição – uma consciência ampliada -, mas o cristianismo nos legou tanto um culto às dificuldades e aos ordálios que talvez seja urgente trazer mais à luz o êxtase da cruz: “o divino pacto de ressurreição” (Liber XV – a Missa Gnóstica).
Para esse fim, pensemos na cruz não só como aquela frequentada pela imagem mítica de Jesus, mas como a encruzilhada regida por Exú. A encruzilhada é um lugar de trânsito de energia, um estar no mundo, um portal por onde enviamos (despacho) e recebemos intenções e realizações. Onde há uma encruzilhada temos um ponto de conexão, seja entre pessoas ou entre o mundo visível e o invisível. É um lugar de acontecimento, a hora que é sempre o momento oportuno, onde mundano e sagrado se encontram. Lá, pode-se ouvir o gargalhar de Exú, pois na encruzilhada há reverência e também irreverência, há surpresa, poder e gozo.
Na Missa Gnóstica – ritual central, público e privado, da O.T.O. -, cruzes são desenhadas astralmente em diversos momentos. Elas são traçadas sobre os corpos da Sacerdotisa, do Sacerdote, sobre o véu do altar e sobre os elementos da eucaristia. O contexto do rito nos permite reconhecer a cruz como uma tecnologia espiritual, um micro-portal que realiza consagrações nos objetos mágicos e nos participantes em oitavas cada vez mais exaltadas. “Mas excede! excede!” (Liber AL II:71). O rito exemplifica um evento da natureza: por um lado, confessamos nosso espírito fixado à cruz da matéria (a operação alquímica da coagulatio – o milagre da encarnação); por outro, o corpo com cruzes desenhadas sobre si expande-se feito um corpo-portal, um corpo vívido inflado pela luz da consciência, que se manifesta. Nessa encruzilhada onde a magia acontece, os triviais pão e vinho podem ser transformados em corpo e sangue de Deus e, consumidos por nós, temos a janela de oportunidade alquímica de também ressurgirmos transformados.
A relação com a cruz é portanto uma operação de magia e um método de iniciação: quão maior minha capacidade de suportar e criar a partir de contradições, mais rica minha consciência e meu estar no mundo. Quão maior minha capacidade de lidar com minhas cruzes, maior meu círculo mágico. Diferente do velho aeon, talvez a atitude icônica do Thelemita não seja mais a resignação de dizer: “Pai (…) afasta de mim esse cálice; porém, não o que eu quero, mas o que tu queres (…)”, e sim confessar algo como: “A minha vontade é a tua – e eu quero beber deste cálice”. Que sabedoria possa ser nosso guia nesse processo.
A cena arquetípica é a mesma: o momento da crucificação se avizinha; mas onde a fórmula do velho aeon precisou polarizar espírito e matéria e com isso acabou separando a vontade de Deus da vontade humana, a fórmula do novo aeon precisareunir os pólos cindidos na unidade de uma só vontade, a Verdadeira Vontade, que é minha e de Deus, já que eu e Deus somos um.
Realizar isso em nossas vidas é ressurreição espiritual e a Missa Gnóstica tenta informar e reproduzir as condições para que ela aconteça, na visão do novo aeon. Precisa existir um desejo pela cruz. “Sê forte, ó homem! deseja, aproveita todas as coisas dos sentidos e arrebatamento: não temais que qualquer Deus te negará por isto”. (AL II:22) O Sacerdote estabelece: “Aceita, ó Senhor, este sacrifício de vida e alegria, verdadeiras garantias do divino pacto de ressurreição”. A dedicação (sacrifício, tornar sagrado) de nossa vida e alegria é o meio pelo qual se realiza especificamente a ressurreição em nós: a manifestação de nosso ouro no mundo.
Claro que a existência não é feita só de vitalidade e alegria e, na ausência destas, cruzamos o reino de diversas outras deusas e deuses, que podem nos auxiliar muito na travessia por vários infernos e estações secas (nigredo); assim como na passagem por reinos alvos de puro néctar e volição (albedo), que frequentemente se desconectam da prática material do dia a dia. Mas a rubedo (fase alquímica que manifesta o ouro) é a única que tem corpo e sangue para unir vida e alegria e por isso as deusas e deuses que presidem a ressurreição são vívidos e alegres, e cada comida e bebida se torna para eles um sacramento, e eles brincam e dançam com a nudez exposta, porque realizaram em seus corpos que a existência é puro gozo. Esse coração vermelho e pulsante é a rosa que desabrocha no centro da cruz: uma floração de Beleza cujo destino é ter seu pólen espalhado pelos ares, pela graça das abelhas que transmitem essa vida pelos cantos da Terra. Que todos possam viver isso, se assim quiserem, é a mensagem do novo aeon.
Por isso, para um Thelemita, a cruz pode ser enfatizada em sua dimensão de magia sexual. Sexo é se relacionar com a alteridade, é gozar junto do diferente. Quando pessoas se unem sob vontade, na encruzilhada de suas diferenças, podem criar algo juntas. A própria sigla “O.T.O.” sugere pictoricamente essa realidade: dois círculos (que podem ser o campo de duas pessoas) se cruzam no meio-termo entre elas. No cristianismo, encontramos a enigmática figura das “duas testemunhas” do apocalipse, que talvez se descortinem à luz dessa perspectiva de magia sexual, onde à dois (isto é, pelo contato com a alteridade) a divindade é realizada. “Mas eles têm a metade: uni por tua arte de modo que tudo desapareça”(Liber AL I:47).
O que um par – ou um grupo – cria junto é sempre surpreendente e maior que eles. Esse é um ponto importante sobre a ressurreição: o eu que a possibilitou torna-se terra fértil para sua manifestação, mas aquilo que ressurge será sempre o novo, algo inesperado. Esse novo é simbolizado pela Criança, que é resultante mas transcende os seus pais e contém em si a afirmação da própria mudança, o gozo do eterno Ir.
Eu me reconstruo de encruzilhada em encruzilhada, de portal em portal, indo e amando, pelo contato com você. Você também ressurge após o contato comigo. Esse é nosso pacto de ressurreição. Assim podemos reconhecer a atividade de nosso bem-amado espiritual, que chamamos de Santo Anjo Guardião, uns nos outros. Embora cada um precise carregar a própria cruz de seus conflitos, dilemas, contradições interiores e que isso claramente pese, esse peso sinaliza a gravidade da Terra que nos conecta a todos. Por isso, nos momentos difíceis, espero que eu e você possamos nos lembrar: “Vem! ergue teu coração & rejubila! Nós somos um; nós somos nenhum” (Liber AL II:66).
Autor: Frater Bodhicitta