O Espanto Que Nos Une

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Primeiramente, devemos denunciar: a pergunta sobre Thelema ser ou não uma religião é um falso problema. Antes que o(a) leitor(a) se sinta enganado, falsos problemas têm a finalidade de apontar uma armadilha de nosso próprio discurso. A cisão epistemológica do ocidente, essencial à modernidade, tratou cronicamente de diferenciar sujeito e objeto, natureza e cultura, realismo e nominalismo, corpo e espírito, religião e filosofia. Não vilanizemos isso de todo — tal separatio se prova essencial para qualquer processo de análise.

Mas os deuses da contemporaneidade são os deuses da relatividade. Marx, em sua frase clássica sobre “tudo que é sólido se desmancha no ar”, já indicava um sinal dos nossos tempos: aquela liquidez estudada pelo sociólogo Zygmunt Bauman. Essa solutio, esse movimento que dissolve o rígido, nos tira as certezas e aponta um futuro ainda inacabado adiante, nos adverte a não nos fecharmos na ortodoxia de respostas prontas — tampouco cairmos no vício do pensamento linear, onde uma coisa não pode ser outra ao mesmo tempo.

Jung, em seu Liber Novus (o Livro Vermelho) (p. 235) insinuou essa complexidade, onde os opostos são complementares, como também esse devir que entendemos ser típico do Aeon de Hórus, a contemporaneidade: “Vosso Deus é uma criança, a medida que não fordes infantis. A criança é ordem, sentido? Ou desordem, capricho? Desordem e insensatez são as mães da ordem e do sentido. Ordem e sentido são feitos e não a se fazer”.
Estamos na era do “Faze o que tu queres” — enquanto era do “se fazer”, nenhum produto está acabado. “Da desordem e insensatez” do desmanche de nossas antigas categorias, talvez um dia nasça uma nova realidade. Isso inclui uma nova visão de mundo, novos valores, nova espiritualidade, nova religiosidade, nova filosofia. Entender “filosofia” ou “religião” estritamente a partir de referências passadas é confessar uma mente osiriana.

Kierkegaard nos diz que a filosofia nasce do “espanto” e deve se manter nessa disposição afetiva. O pensamento mítico — e, consequentemente, o religioso — não tem uma fonte diferente. Na história, os primeiros indícios de cultura — ou processo simbólico — remetem a ritos funerários. O espanto da morte, e consequentemente o espanto da vida, nos inaugura como seres simbólicos e religiosos.

Cindir “razão” e “pensamento mítico”, assim como cindir religião e filosofia, funciona até a página dois. É útil, à medida que preserva o campo semântico de cada um deles. É inútil, à medida que ignora que a racionalidade é a mitologia do ocidente e frequentemente usamos a Deusa Razão para destronar outros deuses mais antigos.

Se tanto filosofia e religião nascem do espanto, ambas estão unidas pela presença do numinoso – aquela sensação urgente de desconhecido que temos quando realmente paramos para prestar atenção na vida e percebemos que não fazemos a menor ideia do que tudo isso significa. Esse espanto se apresenta como sagrado: seja enquanto desilusão ou revelação. A busca subjacente a isso tem sido sempre a de encontrar um sentido. Mircea Eliade nos diz que “o iniciado é um técnico do sagrado”: portanto, alguém que se debruça sobre esse numinoso em busca do sentido, como se espera do filósofo e do religioso. Nietzsche, o filósofo que “matou deus”, também criou outro, na sua “oração ao Deus Desconhecido”:

Antes de prosseguir no meu caminho
E lançar o meu olhar para frente
Uma vez mais elevo, só, minhas mãos a Ti,
Na direção de quem eu fujo.
A Ti, das profundezas do meu coração,
Tenho dedicado altares festivos,
Para que em cada momento
Tua voz me possa chamar.

“O rei está morto — vida longa ao rei!” Os deuses também morrem e renascem, resinificando nossa relação com o sagrado. Assim é com nossa própria noção de sagrado: buscamos atualizar sua experiência, de modo que os “deuses escravagistas” do passado cedam lugar às nossas novas demandas. Importa pouco “onde” o sagrado está, mesmo porque, diante dele, “dentro de mim” ou “fora de mim”, templo religioso ou “meu quarto” interessam pouco. Importa é que sua presença se faz real, pois atua sobre nós, nos comove e nos empreende a ação.

Portanto, o fôlego sagrado de assumir “sou um filósofo!”, “sou um religioso!”, “sou um Thelemita!” deveria, independente do brado, conter a coragem do tempo futuro e não o medo das instituições passadas. Quando assumimos os santos de Thelema, elencados, por exemplo, na Missa Gnóstica, deveria nos preocupar pouco a sombra frígida e monasterial do imaginário cristão, sendo mais interessante entendermos aquilo que sempre foi comum aos “santos” de todos os tempos: seu espanto, sua devoção e a entrega da existência no altar do sagrado. O que é sagrado para nós e como consagrar minha existência — isto é, como levar minha vida — é a descoberta ética à qual cada Thelemita está sujeito.

Crowley toma parte íntima na mudança de paradigma da contemporaneidade quando, ao afirmar o novo representado por Thelema, recorreu ao imaginário do passado para embasá–la. Magick é, afinal, a tentativa de Crowley ler contemporaneamente temas pré–modernos: magia, yoga hermetismo, alquimia e, basicamente, todas as formas de misticismo contidas em seu sistema mágico. Por um lado, assumiu o método de seu sistema como sendo aquele “da ciência” — por outro, o objetivo, sendo aquele “da religião”. Essa antinomia já revela sua tendência de aproximar o que antes era oposto. Edgar Morin incluiria essa forma de pensar em sua “teoria da complexidade”.

Do mesmo modo, Crowley, auto declarou–se “Profeta” do Novo Aeon e enunciador de uma nova Lei e de um sistema metafísico — ao mesmo tempo em que ancorou a possibilidade de iluminação na imanência da experiência. Enquanto Thelemitas, podemos entender que esse paradoxo — e paradoxos no geral — não representam um problema, mas o convite a uma nova forma de pensar. “Religião” e “filosofia” estão incluídas nisso. E os Thelemitas estão na encruzilhada dessa nova visão. Não raro, um pouco perdidos — mas também isso não é um problema.

Sobre esse debate, Rodney Orpheus fala sarcasticamente sobre o suposto “Thelemita sério”, inserindo em seu texto On Thelemic Ortodoxy (“Sobre ortodoxia Thelêmica”) o seu ponto de vista:

“Thelema é uma religião? Agora, uma criança de dez anos poderia responder isso em poucos segundos por simplesmente procurar a palavra “religião” em um dicionário (a resposta correta é “sim”, a propósito) […] mas nããão… diz o Thelemita Sério:

Não é uma religião, porque Nosso Profeta assim o disse”. […] Ironicamente, é claro, o fato de que os Thelemitas Sérios não possam aceitar Thelema como uma religião era por causa de sua crença religiosa na Palavra do Profeta.

Essa situação icônica certamente revela mais um oposto que é interessante unirmos dentro de nós. Simpatia ou aversão por qualquer um de seus pólos parece nos privar da experiência fundamental do espanto que é subjacente à filosofia e à religião, ao corpo e ao espírito. Sem ele, não viveremos plenamente nem um, nem outro, nem ambos.


Autor: Frater Eros

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