Nem Toda Boca Precisa de Batom

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Estava no centro da Cidade do Rio de Janeiro, quando decidi almoçar na “Confeitaria Colombo”. Constatei que eles possuem um selfservice que não é dos melhores, mas em compensação possuem um preço que faria inveja até mesmo ao mais requintado restaurante da culinária francesa.

Olhei em volta e o restaurante estava lotado.

Homens de negócio reforçavam o seu style empresarial em meio àqueles espelhos, lustres e decoração art-noveau; mulheres expressavam com risinhos afetados o receio de alargar a silhueta enquanto repetiam aquela fatia a mais de pudim; alguns turistas cuja pele era tão branca que se fundia ao mármore do local, expressavam seu encanto pela cidade; e grupos de senhores e senhoras todos eles muito bem arrumadinhos conversavam animadamente sobre os eventos do dia.

Olhei novamente a conta, internamente resmunguei por ter caído naquele engodo, mas continuei prestando atenção no entorno cheio de copos de cristal e prataria fumegante que continha aquilo que deveria ser a iguaria do local.

Perguntei-me o que estava eu fazendo ali e, por que diabos, havendo tantos restaurantes no centro da cidade, havia eu justamente sido impelida àquele que com grande requinte e sem a mínima timidez esbulhava o meu bolso.

De repente uma cena chamou minha atenção.

Numa mesa circular, já finalizando a refeição, encontravam-se dois casais idosos. Pareciam conversar animadamente e, a julgar por suas posturas e figuras muito bem tratadas, pareciam ter saído de alguma foto do final do século XIX.

Uma das senhoras, já lá beirando os 80 anos, num gesto extremamente bem pensado, abriu a bolsa e trouxe à luz uma intrigante caixinha prateada, delicadamente decorada. Abriu o pequeno tesouro e, com a delicadeza de uma musa do cinema mudo, se olhou no pequeno espelho refazendo com batom o biquinho de lacre, cujos contornos haviam sido apagados pela gulosa transgressão da refeição.

A imagem daquela senhora retocando os lábios me deixou pensativa. Perplexa, percebi que havia penetrado numa espécie de dobra do tempo e retornado ao passado.

Eureka!

Essa era a razão pela qual eu estava ali, pagando aquela conta exorbitante!

Não me motivara a entrar ali para degustar uma refeição, mas para saborear a nostalgia de um passado muito mais atraente do que o nosso contemporâneo digital. Havia ido ali para viver um mito que, de alguma forma, havia penetrado no meu universo pessoal e escandalosamente se refletido naquele gesto coquete da senhora que retocara o biquinho de lacre.

Olhei novamente ao redor e percebi que as pessoas estavam ali pelo mesmo motivo que eu. Não estavam exatamente degustando o almoço, mas olhavam com avidez os enfeites quase rococó, os lustres majestosos, os espelhos imensos que refletiam o passado e se projetavam em nossa imaginação como portais para a experiência do nostálgico devaneio. Estávamos como que enfeitiçados, agindo sob a vontade de algo ou alguém que não éramos nós e, é claro, o dono da confeitaria enchia os bolsos às custas da nossa própria inconsciência.

Comecei a pensar que, afinal de contas, as $$$ do almoço haviam valido a pena, tão inusitado era aquilo que observava e os pensamentos que me abordavam, gerando uma experiência que ampliava a minha compreensão sobre a conexão individuo x coletivo que até então era ímpar no meu cotidiano.

Aquela senhora não era eu, nem aquele espaço, nem aquele ambiente, nem tão pouco aquela era a vida que eu queria, ou a imagem que queria experimentar de mim mesma, no entanto, eu estava ali influenciada por uma força que superava a minha própria e verdadeira expressão individual. Corrompia o meu próprio Eu em favor de algo que nem mesmo agora faço ideia do que seria.

Observei dentro de mim o conflito entre o mito social enfiado pela minha goela abaixo e o meu verdadeiro mito pessoal, aquele meio indígena do pé no chão, cabelo ao vento e vida simples, isenta de grandes adornos, mas também de grandes impostos e contas gordas. Algo em mim se debatia com um desespero quase agonizante e gritava, buscando chamar minha atenção para que pudesse abandonar as trevas e surgir na luz. Aquele ser gritão e adúltero, lutando para romper e se desvencilhar do fascínio social, não era outro senão Eu mesma.

Acho que pela primeira vez pude sentir com firmeza indubitável aquilo que em mim eram os hábitos impostos, motivações até então predominantes na minha vida, e aquilo que era o meu real querer enquanto identidade integral livre de atavismos sociais.

Internamente ri da minha própria imagem ao compreender o quanto havia estado escrava de algo que não era eu, ao qual não pertencia e jamais viria a pertencer. Durante 40 anos havia lutado uma batalha insana contra a minha própria natureza e o fluxo do universo, tornando a minha vida um verdadeiro inferno de cobranças e frustrações a mais das vezes projetadas sobre o outro.

A grande descoberta que acabara de fazer é que a minha boca não precisa de batom!

Saí do restaurante com a certeza de que uma transubstanciação de papéis internos seria necessária, de modo a que o meu verdadeiro Eu pudesse não só se refletir como gozar do viver real. Esta transubstanciação era uma inversão de papéis entre a minha persona social e a minha personalidade original. Mais do que isso, uma inversão de valores internos, onde aquilo que Eu Sou deveria ser trazido à luz sem medo, timidez ou vergonha para amaldiçoar tudo aquilo que até então me submetera a esta fantasia coletiva à qual todos nós nos escravizamos de uma maneira ou de outra. Minha carne e meu sangue deveriam deixar de ser o pão e vinho consumidos pela massa e assumir o seu papel como corpo e sangue do meu próprio Cristo Interno, aquele centro conhecido como Tiphareth, tesouro da minha própria existência, minha própria consciência divina.

Hail Babalon! Silenciosa Senhora do Entendimento, Sagrada Parteira do Universo!

Duas semanas após este evento estou deixando o Rio de Janeiro e partindo para uma pequena cidade no litoral. Na mala não vão nem batons, nem ambições. As condições que me levaram até este ponto são bastante inusitadas e poderiam ser assustadoras aos olhos dos desavisados, mas aquele que pressente que a sua Verdadeira Vontade controla os ventos e as marés da mudança não teme, mas freme de paixão pela nova aventura. E, afinal de contas, é apenas nisso que a vida de todos nós se resume, uma grande aventura a ser usufruída pelos confins do universo.

Esta é a primeira vez em toda a minha vida que me direciono exclusivamente ao encontro de mim mesma; a primeira vez em que me dispo completamente daquilo que projetam em mim, e parto em busca da construção do meu verdadeiro mito pessoal, da minha imagem real, da transubstanciação de minha própria carne e concretização do Eu Sou o que Sou o Meu Querer e nada mais…

Trago comigo um agradável friozinho na barriga diante do novo, mas também a certeza de que o Silêncio e a paz me aguardam.

Poderia uma criança nascer em melhores condições?


Autora: Soror Babalon

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