Filosofia & Cosmovisão

Tempo de leitura estimado: 4 mins

O processo de “criação” do mundo em Thelema (ou processo cosmogônico) pode ser abordado em termos metafísicos e simbólicos — como a relação entre os deuses que falam no Livro da Lei — , mas também pensado em termos de uma equação matemática. Os próprios deuses Thelêmicos podem ilustrar essa leitura:

Do ponto de vista da Física, a Inércia original expressa a si mesma como duas for- mas complementares de Energia — o pequeno, ativo, Elétron Negativo (Hadit) e o grande, passivo, Positivo Próton (Nuit). Quando satisfazem um ao outro, dois fenômenos ocorrem: (1) suas qualidades opostas se cancelam no Zero. (2) uma “criança” nasce da união; i.e., um fenômeno positivo é produzido, cuja natureza é inteiramente diferente daquela de seus “pais”; pois é finita e possui limitações e qualidades próprias

CROWLEY, The Law is For All, p. 89

A fim de entendermos a cosmovisão de Crowley que fundamenta a teoria e prática de Magick, precisamos pensar a teoria energética formulada por ele a partir da relação entre Nuit e Hadit descrita acima, bem como a partir dos postulados–chave do Livro da Lei: “Faze o que tu queres será o todo da Lei” e “Amor é a lei, amor sob vontade”. Essas frases assumem em Magick um sentido metafísico, filosófico e operativo.

Os fenômenos descritos anteriormente como “(1) suas qualidades opostas se cancelam no Zero. (2) uma ‘criança’ nasce da união” estão representados pelas equações matemáticas simbólicas:

  • 0 = 2.
  • 1 + (–1) = 0

Isto é, a soma total das forças do universo é zero. Suas partes são oposições dinâmicas. Para Crowley, essa “fórmula” expressa aquela que seria “a única, a simples e necessária solução do Enigma do Universo”, segundo ele havendo pouco, além disso, para ser entendido sobre sua teoria de Magia (CROWLEY, Magick without tears, cap. 05). Sua teoria energética, então, é de que divisão (2 — o mundo da dualidade) e dissolução (0 — o “nada”) comporiam a dinâmica perpétua das coisas, unidas graças ao conceito de “amor” (Agape).

A questão premente nesse estudo é que as fórmulas acima encerram, em sua curta proposição, um debate filosófico entre niilismo, monismo e dualismo, estruturante de perspectivas da realidade, não só no campo religioso. As fórmulas acima também ilustram a ambição de Crowley articular essas três cosmovisões a partir de sua teoria e de seu entendimento dos conceitos Thelema e Ágape.

Crowley nos diz sobre essas visões:

[…] a última delas [dualismo] é, na superfície, a mais plausível; pois praticamente a primeira coisa que nos damos conta ao inspecionar o Universo é o que a escola Hindu chamou de “os Pares de Opostos”.

CROWLEY, MWT, cap. 05

Os monistas, no entanto, são descritos por Crowley como uma escola “mais sutil e refinada”, uma vez que intentam se aproximar da “realidade última”. Diante da questão: “como as Várias coisas (das quais estamos cientes) vieram a ser?”, a resposta de que as várias coisas vêm de várias outras soa insatisfatória e, assim, o universo tende a ser explicado como um fenômeno único, que se diversifica por adaptação [CROWLEY, MWT, cap. 05]. Se a ilusão das partes é removida ou integrada, o “todo” poderia ser contemplado.

“Mas — um momento, por favor!”, sinaliza. A doutrina monista, preocupada com a realidade última das coisas e sua visão da singularidade do universo, introduz–nos a pergunta prática de como reconhecer, afinal de contas, a “realidade”. Para Crowley, essa questão só poderia ser respondida pela experiência direta: “Principalmente pela intensidade, sua persistência e pelo fato de que ninguém pode nos convencer do contrário”. Até aí, a visão monista parece satisfatória, ainda que uma forma de idealismo. Mas dois fatores incomodam Crowley. A primeira delas seria a saída filosófica para a questão do mal:

Eu não posso ver como chamar o Mal de “ilusão” nos auxilie. Quando o Cientista Cristão ouve que sua esposa foi selvagemente atacada por seu Pequinês, ele tem que sorrir e dizer: “alego aqui um erro”. Não é bom o bastante.

CROWLEY, MWT, cap. 05

Isto é: a resposta do monista para o mal tende a ser uma retirada de sua substância. Por exemplo: o catolicismo assume Deus como Summun Bonum, isto é, um “Bem” substancial e um “Mal” como Privatio Boni, isto é, a ausência de Deus — um “mal” sem realidade, ilusório. Isto, para Crowley, não satisfaz o problema tangível do mal.

O segundo ponto é que a própria experiência da unidade, para doutrinas como o Hinduísmo, encontraria precedentes místicos onde “Atman (ou Brahman), esse Universo destruidor de limi- tes, é ele mesmo abolido e aniquilado”. A experiência da singularidade seria Atmadarshana e, da aniquilação, Sivadarshana (CROWLEY, MWT, cap. 05). Se a unidade for representada por um ponto, a ausência de dimensão precisa ser reconhecida como um “nada”. Crowley começa, então, a pensar na perspectiva niilista. Para ele, referir–se àquilo que não tem quantidade ou qualidade como unidade, como os monistas o fazem, é errôneo: incorre em conferir uma quantidade e qualidade. Afina–se, assim, com o pensamento taoísta, elogiando–o como iniciador da ideia do “Nada Absoluto” e sua constatação de que “é sempre possível reduzir uma expressão a Nada, tomando quaisquer dois termos equivalentes e opostos”. Da mesma forma, uma expressão poderia ser criada a partir do Nada, observando–se esta mesma lei para seus termos: sempre equivalentes e opostos. O Tei–Gi (representação do Yin e Yang) seria representação dessa dinâmica de como o universo se compõe, a partir do nada, em dualidade. É assim que Crowley pretende articular nulidade e dualidade, sua interação compondo uma unidade — simbolicamente, aquela “Criança” que nasce dessa união (Hórus).

Assim como o currículo de Magick buscou aproximar Ocidente e Oriente através de métodos tanto de magia cerimonial como técnicas de Yoga, podemos perceber o investimento de Crowley em aproximar as principais apreciações filosóficas que  embasaram  as grandes religiões do mundo, de modo a, simultaneamente, sintetizá–las e atualizá–las sob a luz de Thelema. Um projeto certamente ambicioso, mas leal ao postulado de Nuit   no Livro da Lei: “Pois eu estou dividida por causa do amor, pela chance de união” (Liber AL, I:29).

Conheça nossa livraria!
Traduzir
Page Reader Press Enter to Read Page Content Out Loud Press Enter to Pause or Restart Reading Page Content Out Loud Press Enter to Stop Reading Page Content Out Loud Screen Reader Support