Ateísmo & Thelema

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Algo que por vezes surpreende é a presença de ateus dentro dos quadros da O.T.O., muitos deles ativos dentro da Ecclesia Gnostica Catholica. Ainda que sirva como uma excelente demonstração da capacidade inclusiva de Thelema há de se considerar, dados os aspectos da magia em lidar com divindades ou do misticismo em suas próprias qualidades devocionais. Ainda assim, estão lá os ateus. Como é possível? Como eles fazem? Do que se alimentam? Vamos tentar entender isso direito.

Antes de mais nada é preciso ter em mente que um ateu não é apenas aquele chato que faz careta só de estar e menos de um quarteirão de uma igreja ou escreve livros chamando religiosos de batatas sem cérebro. Ateísmo é algo muito, mas muito mais amplo que isso. Há todo um escopo que vai do mais forte materialismo até religiões ateístas. Além do mais, não é também algo que tenha sido inventado por algum biólogo histriônico.

Mas comecemos do começo. Que seria… Definir o que significa a própria palavra. O termo atheos (“sem deuses”) surge na Grécia clássica, por volta do século V a.C. como uma espécie de piada. Referia-se àqueles que não cultuavam os deuses que o resto da sociedade considerava supimpas. E quem compunha essa turma eram uns filósofos (que também se faziam os cientistas de então) que se deram por conta que era possível explicar o mundo e as coisas sem utilizar a ideia do divino para tanto. Reparem que, ao contrário de muitos ateus atuais, eles não necessariamente negavam a existência dos deuses, apenas diziam que sua existência não era uma ferramenta essencial para a compreensão de como o mundo funciona. Os que negavam ativamente o divino eram chamados, aliás, de αθηοσ (atheos). Séculos mais tarde, durante a Renascença, o conceito evolui para umas ideias estranhas como a liberdade de pensa- mento, a crítica à religião e (oh, meu deus!) o antropocentrismo. Mais adiante, por volta do séc. XVIII, baseados nesses conceitos e outros começou-se a usar o termo “ateu” para referir-se àqueles que não tinham fé em Deus.

Só que depois a coisa complicou um tanto quanto. Para ver o quanto, tentemos entender o que, hoje em dia, se entende como ateísmo. Ou melhor, ateísmos. Assim, no plural mesmo.

De forma mais rasa, ateísmo é a negação da divindade. Só que para isso teremos de definir o que vem a ser “divindade”. Se há algum tempo isso significava basicamente o Deus cristão, hoje em dia o conceito esticou-se um bocado para abranger outras religiões, misticismo, ocultismo, esoterismo e por aí vai. Desta forma, o conceito de ateísmo também teve de adaptar-se a essa ampliação conceitual. Desta forma, acabamos trabalhando com duas vertentes principais  do  pensamento  ateísta: o ateísmo forte e o ateísmo fraco. O ateísmo fraco parte do princípio da ausência de crença (ou fé, se preferir) no divino. Um exemplo desse tipo de situação são os recém-nascidos. Eles não conhecem nenhuma divindade, não praticam nenhum culto. O teísmo então é considerado como uma construção social ou intelectual. É dito, então, que este é um ateísmo implícito, uma simples ausência de teísmo e não sua negação. Indo mais além, temos o chamado ateísmo forte. Este, por sua vez, expande-se em ateísmo forte positivo, que traz a negação ativa da divindade, e em ateísmo forte negativo, que inclui todas as formas de não teísmo como, por exemplo, o agnosticismo e algumas religiões ateístas (já, já falaremos nisso). O ateísmo positivo busca construir suas proposições pessoais apenas no que possa ser comprovável através da lógica, da experimentação e da comprovação. Desta forma, retira da equação qualquer referência ao metafísico. O grupo mais radical do ateísmo positivo é chamado de neoateísmo; estes não apenas negam o divino mas consideram qualquer forma de religiosidade como prejudicial ao desenvolvimento humano,     combatendo ativamente qualquer forma de teísmo e mesmo indo de contra o ateísmo negativo.

Bem, estes são os ateístas. Mas como funciona o pensamento ateísta? Funciona através do pragmatismo, também chamado de apateísmo. A ideia aqui é aquela expressa pelo ateísmo positivo ou mesmo àqueles velhos filósofos gregos: a de que não é necessário se recorrer ao divino para explicar os fenômenos naturais. Como no ateísmo fraco, não nega o divino, mas o pragmatismo considera o divino como inútil ou desnecessário. Por esse ponto de vista, o divino não possui (ou ao menos, não deveria) ter influência sobre a vida cotidiana. Em uma abordagem mais leve, o sagrado é uma questão de foro pessoal e não público. Da mesma forma, o pragmatismo não entende a ética ou a moralidade como provenientes do divino. Da mesma forma, a resolução de problemas não deve ter origem divina mas sim na organização de um pensamento lógico através do intelecto. Muitos ateístas também colocam que é uma posição necessária manter uma indiferença a qualquer forma de religiosidade, ou mesmo desconhecendo qualquer divindade.

Contudo, mesmo com tudo isso, existem religiões com características ateístas. As mais antigas delas são um grupo de escolas védicas, a Sankhya e a Mimamsa. E mesmo o jainismo. Outros exemplos de religiões ateístas são o budismo clássico, o zen budismo e o taoísmo. Estas religiões não descartam um sistema de crença ou uma ideia metafísica da realidade mas baseiam-se na ideia central de que são as ações e decisões do próprio ser humano que definem o mundo e não decisões de divindades. No ocidente, durante o governo jacobino na França, foi criada uma igreja, chamada Culto do Ser Supremo, ou Culto à Razão como uma forma de oposição ao cristianismo.  Nesta época  surgiu  também a Igreja Positivista, que cultua uma personificação da Razão, que tem como noção central  a elevação humana através da Verdade e da Liberdade.

Mas o que Thelema tem a ver com isso? Vejamos Thelema. Thelema possui uma visão bastante racionalista do divino. Isso pode ser visto no lema da Astrum Argentum: “o método da ciência, o objetivo da religião”. Como assim? Isso significa que os fenômenos em Thelema não devem ser aceitos simplesmente na base do “os deuses quiseram”. Existe uma aplicação do chamado método científico: observação, anotação, repetição, comprovação. Claro, estamos falando aqui de fenômenos não necessariamente físicos, mas também subjetivos. Então, em termos de Ciência, claro que estaríamos falando mais em uma Ciência como a Psicologia do que como a Física, por exemplo. Voltando à vaca fria, quando começamos a ver os postulados de Magick expostos por Crowley no Book 4 (vão lá ver, é muita coisa para colocar aqui) não encontramos referências a deuses ou coisas do tipo. Todo o conceito se posiciona ao redor das ações do próprio ser humano. Em muitas outras obras de Crowley, só para ficar no fundamental, vemos orientações para a evolução do ser humano de uma forma que independe de qualquer intervenção divina.

Mas e quando colocamos na mesa a Trindade do Livro da Lei, Aiwass e outras coisas assim? Calma, Joãozinho, não estamos jogando nada disso fora. Apenas estou colocando que, sob um determinado ponto de vista, todas as divindades podem também ser entendidas como símbolos para se transmitir uma ideia ou como arquétipos dentro do inconsciente humano. Sob muitos aspectos, Thelema está próxima dos conceitos das religiões ateístas orientais, colocando o ser humano no centro de suas ações e consequências. Basicamente, um Thelemita não usa a divindade como desculpa, mas assume para si a responsabilidade plena por sua vida. Claro, esse está longe de ser o único ponto de vista sobre Thelema. Mas é um ponto de vista plausível.

Está certo que um ateísta forte positivo, mais ainda um neoateísta, teriam pouca chance de se envolver com Thelema. Ou com qualquer coisa parecida, para sermos sinceros. Por outro lado, vertentes ateístas como o forte negativo ou o fraco, podem encontrar sua casa em Thelema por suas características humanistas e pela possibilidade de ser encarada de forma não religiosa. Do ponto de vista do ateísmo, Thelema pode ser vivida através de sua filosofia ou seus princípios sociais ao invés de uma religião. Ou, de forma metafísica, através da noção de simbologias e arquétipos, colocando todo o divino dentro do próprio ser humano.

Desta forma, Joãozinho, não é preciso se surpreender ao encontrar um ateu Thelemita. Nem todos eles são materialistas ou necessariamente antirreligiosos. Há formas de ateísmo que trabalham com a metafísica. Apenas não colocam em sua vivência de Thelema a questão da divindade na sua forma de explicar ou conduzir sua vida.


Autor: Frater Hrw

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