Amenti

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Eis que lá se encontrava ele mais uma vez entre as paredes daquele quarto, cama desfeita de uma noite mal dormida, paredes vazias tal qual sua própria alma.

Recuperava-se de algo mal definido, os sinais da doença desapareceram tão subitamente quanto haviam surgido, se é que o que teve pode ser chamado de doença, ao menos física. A ele lhe parecia que algo dentro dele esmorecia ou, quem sabe, morria, estendendo sua sombra como garras sobre seu próprio corpo, sufocando os sinais de vida. Vida? Mas que vida? Não havia vida sobre a face da Terra, ao menos vida conforme ele conhecia. Tudo lhe parecia inóspito, os mundos que um dia idealizara já não existiam, mundos de cores e de amores, de batalhas e vitórias, de derrotas passageiras que instigavam a definitivas conquistas. Não, não havia mais pelo que lutar, ideais a conquistar nem pensar… As grandes batalhas eram coisa do passado, no presente, quiçá mesmo no futuro, não havia o que temer, quem perde tudo, inclusive a fé, não teme mais nada. O temor é fruto do desejo de manter o que já se possui, abolido o desejo desaparecem as posses e os medos. Só não esperava que desaparecesse inclusive a vontade de viver, seria a vida apenas um desejo?

Almejara tanto aquele momento, julgara só assim poder encontrar a paz. Tola ambição, a paz é algo proibido ao humano, um terreno árido que jamais deveria ser almejado. Ousar alcançar a paz é morrer na inércia do que não existe.

Em sua luta destruíra Deuses, Anjos e Demônios, rasgara o véu da ilusão mil vezes procurando a essência e ao final descobrira que a essência é um grande vazio, um imenso nada que corrói lentamente o pobre que a alcança. Malditos Orientais!

Levanta-se e vai até à janela, uma réstia de sol teima em lutar contra as nuvens, como se pudesse também rasgar os véus do mundo tentando alcançar a essência da pequena poça de água abaixo, logo estaria dissolvido e experimentaria o vazio. O vazio é a ausência do desejo que saiu em busca de si mesmo, o retorno à origem, ou talvez apenas o desejo pelo amorfo, a forma em busca de sua própria manifestação.

Volta-se para o espelho e dirige-se à pia, lava seu rosto e é como se a água fria pudesse lavar mais do que sua pele, pudesse se fundir ao frio de sua própria alma. Ele e a água são um, solta uma sonora gargalhada, pelo menos algo é Um!

Olha seu reflexo no espelho embaçado pelo tempo, seu rosto mostra sinais de cansaço, não cansaço físico, mas cansaço de viver, de alguém que lutou muito para chegar a lugar algum. Poderia ter imaginado melhor fim…

Senta-se na pequena escrivaninha para escrever a seu amigo Miguel, não o Anjo, pois que a esse também já destruíra. Ri de seu próprio pensamento, enquanto lentamente pega da caneta para informar a Miguel sobre suas últimas mazelas, o amigo deveria estar preocupado, há muito tempo que não enviava notícias. Talvez um e-mail fosse mais apropriado, mas andava meio avesso aos tempos modernos, modernidade era símbolo da decadência e de decadente já bastava ele próprio.

Caro Miguel,

Faze o que tu queres, caso possas ou saibas o que realmente queres.

A tal doença que parecia não ser doença já se foi e eu encontro-me fisicamente recuperado. Porém uma completa desolação invadiu minha alma, dizem que é assim quando a doença se aprofunda e deixa o nível físico para invadir o mental. Quiçá em breve não me encontrarei confortavelmente internado entre os loucos, a loucura deles me parece mais atraente do que a mediocridade que atualmente assola os ditos normais.

Minha alma é um deserto sem expectativas, um fluxo angustiante que parece não ter fim. Uma dor proveniente da ausência de mim mesmo me assola, a dor de estar insuportavelmente vivo. Nem sei mais por que vivo, talvez apenas por covardia. Vergonha das vergonhas, quem diria, meu amigo, eu, sempre tão valente, agora não mais do que um covarde.

Olho ao meu redor e nada me desperta interesse, nem mesmo as belas garotas de outrora, talvez me torne homossexual, ria se assim o desejar, mas o pior é que nem mesmo os homens me interessam, melhor seria optar pela homossexualidade, seria um caminho. Procuro algo pelo qual valha a pena viver, mas não encontro se quer a mim mesmo. Penso nos anos que ainda estão por vir, na tortura dos dias vazios e sem sentido que ainda me aguardam, tudo parece duro demais para suportar.

A vida é uma cruz, impossível não pensar em Cristo no calvário, carregando aquela puta cruz que ninguém lhe perguntou se realmente queria carregar ou bebendo daquela maldita taça da qual jamais desejou beber. Se nem a vontade dele foi respeitada, imagina a minha, um depressivo tentando sobreviver ao mundo! Nem sequer um milagre consigo realizar, mesmo atravessar a rua para alcançar a padaria em frente me parece tarefa impossível com aquela porrada de carros buzinando e exalando fumaça tal qual dragões. O pior é que o cigarro está no fim. Sou mesmo patético, ou talvez apenas pateta.

Procuro um raio de luz nesta eterna noite escura, algo que me provoque um suspiro (a vizinha bem que se esforça, coitada!), mas tudo me parece árido e sem sentido. Não sei como suportar viver sem objetivo, viver apenas por que ainda não chegou o momento de morrer, gastando os dias, vendo passar o anos.

Quanto tempo poderei resistir deste modo é a pergunta que me faço todos os dias. Dias, talvez meses ou anos, mas será que algum dia não serei abatido pelo cansaço e não terei a dignidade de acabar comigo mesmo?

Sou um suicida, vivo na esperança de um dia poder morrer…

“Deus!” Eu sei, eu sei, poupe-me dos seus comentários, sei que já matei Deus, mas ainda não o hábito. Retornando ao hábito que é o último alento de vida que ainda me resta : “Deus! O mundo é uma tortura, um deserto, um labirinto sem saída!”

Tento suspirar por mim mesmo, sentir pena de mim mesmo, mas até esta tentativa me desperta risos de escárnio que, de qualquer forma, ainda que por breves momentos, me trazem algum entusiasmo, entusiasmo esse logo devorado pelo vazio.

Meus sonhos são povoados pela morte e, em verdade, estes são os únicos momentos de paz que usufruo, embora vez por outra desperte sobressaltado somente para descobrir que ainda estou vivo. Esta noite sonhei com um menino morto num caixão de vidro, acho que era eu. Uma outra noite sonhei que carregava o corpo rígido e frio de um lactente no meu colo, podia sentir o frio de seu corpo em contato com minha pele, acho que era eu carregando a mim mesmo. Sei não, acho que morri e alguém está tentando me avisar disso, do tipo: “Bicho, se manca! Teu lugar não é mais ai!” Só esqueceram de enviar o mapa indicando qual é a próxima parada, acontece…até mesmo lá eles devem ser displicentes. Ou talvez seja apenas um diálogo de eu mesmo morto com eu mesmo vivo, mas como a displicência é a minha melhor característica eu provavelmente esqueci de desenhar a porra do mapa! Ria se quiser, é mesmo para rir…

Diabos! Se morri por que o corpo não pára? Ele é tão obstinado que prefere ser zumbi do que seguir o curso daquilo que naturalmente já ocorreu em outro plano. Sim, mas também devo entender que deve existir uma disparidade de tempo entre as diversas dimensões, talvez o corpo não seja tão obstinado assim, é apenas uma questão de tempo. “Tempo x Espaço”, ainda resta uma esperança! Enquanto isso eu me arrasto por aqui, coxo, defeituoso, mas ainda andando neste mundo miserável, tentando experimentar aquilo que chamam vida.

Na verdade, escrevo esta carta não para você, mas para dialogar comigo mesmo, um monólogo que travo do meu Eu para a ausência do Eu Mesmo. Sou apologista do egoísmo, você bem o sabe.

Parei um pouco para reler estas poucas linhas, ri às gargalhadas, elas me parecem um drama sob a égide de um patético tom poético. Sou mesmo um idiota, se nem homem consigo ser, imagina um poeta!

Rio de mim mesmo, dramático na vida, dramático na morte, dramático inclusive na arte. Sou mesmo um tolo presunçoso, ouso chamar minhas tolas divagações de arte, deve ser o tal do ego, talvez os Orientais não sejam tão idiotas assim. Como não consigo destruir o ego ele vem e me destrói, bom, cada qual luta com as armas que possui, afinal de contas até mesmo o ego deve ter o direito de lutar pela vida. Ele que a tome então, nada mais me importa, sou orgulhoso o suficiente para não me submeter a lutar por um osso desgastado e já sem sabor. Morte para os cães, mesmo os de raça como eu!

Minha arte é arrebatada, tão arrebatada quanto a minha própria alma, ao menos isso devo reconhecer! Pena que me perdi na sombra daquele carvalho velho e ardi como um mísero cupim naquela luz da lâmpada de 100 w lá da sala. Bem, nem todos podem ter um destino glorioso, não é mesmo?

A vida é a arte dos ilusionistas, nunca fui um bom ilusionista, lembra daquele truque que tentei fazer para impressionar a Lúcia? Pois é, me dei mal, tal qual no palco como na vida, tudo não passa mesmo de teatro, a diferença é que a vida é uma peça de gosto duvidoso e muito mal dirigida. Pelo menos naquele dia eu me diverti, rimos para valer e ao final ainda ganhei uma boa foda, aquela Lúcia era mesmo do balaco-baco! Soube que casou e teve filhos, me disseram que não é mais a mesma, bem tudo na vida é temporário, a sabedoria está em aproveitar o tempo certo e gozar, gozar muito!

De qualquer forma, espelho minha própria dor nestas letras, melhor do que espelhar minha cara no espelho. Refletir a carne que sangra neste pedaço de papel me faz rir, jamais conheci algo tão engraçado quanto o meu drama de viver. Ser sábio implica em rir de sua própria dor, por que afinal, serei Eu Mesmo, que sofro?

Sou tão piegas que minha pieguice faz do meu drama uma comédia, podia ser pior… Quem sabe, bem lá no fundo, eu não seja senão um comediante que espoem com escárnio o seu próprio drama de viver?

Viver?

Mas o que é viver senão a longa e ansiosa espera pela morte? Mas então depois da morte o que me aguarda? A longa e ansiosa espera por viver?

A existência não tem sentido, companheiro. Deve haver algo mais além, não é possível que alguém tenha criado todo este aparato apenas para brincar de viver e morrer. Ou será que isto tudo é só para representar e se divertir? Brincar de sofrer? Bem, sempre existem os masoquistas por aí, talvez alguém esteja se divertindo afinal, não eu!

Sempre procuramos a profundidade, talvez no raso possamos encontrar o sentido, devemos inverter a direção das coisas, isso, inverter o mundo! Que tal? Pelo menos é uma direção nova!

Ao menos ainda filosofo, filosofar é isso, dizer nada utilizando-se do maior número de palavras possíveis, aumentando a complexidade passo a passo de forma a confundir a mente do pobre leitor. Quanto maior a confusão, maior a quantidade de aplausos. Em outras palavras, quanto menos as pessoas te entendem mais genial você será considerado.

Sou um gênio!

Odeio tanto a humanidade que direciono todos os meus esforços, inclusive os inconscientes, para me tornar a criatura mais estranha da face da Terra. Acho que estou conseguindo, um dia me reconhecerão como um gênio, talvez não no campo das ciências ou da arte, mas, sem dúvida em relação ao surrealismo da minha própria existência.

Tédio…

Me entedio comigo mesmo. Se sou vida como posso achar a vida excitante? Natural procurar a morte. Mas se a encontro o que farei lá? Conversar com o tal do Anúbis? Esse cara é um chato, já lhe conheço a vida de cabo a rabo, os velhos arquétipos não tem nada de novo para contar, são como fitas gastas cantando sempre a mesma canção. A humanidade necessita de novos arquétipos, companheiro, novos reis, novos deuses, novos paraísos e infernos, tudo já está por demais batido. A mente humana mudou, não diria evoluiu, precisa de novos heróis que vivam sob novos parâmetros.

Mas se nem vida, nem morte então o que deverei procurar? Um espaço intermediário? Um interlúdio? Uma intercessão entre dois mundos cujas características são o nada? O que há entre o definido e o indefinido? A incerteza daquilo que ainda não foi criado, o sem nome não caracterizado, a massa amorfa esperando ansiosa as mãos do artista para ser moldada. Sim , é isto o que procuro, o ser não criado, o amorfo, o eterno sem forma, sem limites, pronto para adquirir o molde monstruoso que a minha mente decidir inspirar. Não sou eu o monstro de alguém mais? Não sou eu o sonho de alguém que não sou? Quem me desejou? Que mente cruel me projetou? De que piada sarcástica surgi eu? Qual foi o delírio, o riso hilariante, a lágrima de dor que me criou?

Pelo menos crio este texto e dou algum significado à dor.

Sabedoria diz: “Sê forte!”

Eu digo: “Se fores sábio abandona a busca da sabedoria e volta para os braços da Lúcia! Assume a tua covardia!”

Sabedoria é destruição. Sê covarde, portanto, e ousa criar!

Este texto está mesmo muito engraçado! Deus, o que seria de mim sem a loucura que a dor inspira?

Alguém me disse uma vez que sou um Mestre de destruição, pasme, ele me disse isto como num elogio!

Sim, sou Mestre na destruição de mim mesmo, mas vejam só que ironia, destruindo eu me crio e recrio milhares de vezes. Deste modo, nem mesmo a opção da destruição repousa em minhas mãos. Onde estão então as mãos em cujo centro repousa a opção da minha própria vida, de que mãos surge a verdadeira vontade da minha própria existência?

Bem, filosofia demais embaralha inclusive a minha própria mente, chega!

Escrevo esta carta para me despedir de você Miguel, hoje optei pela morte, que se fodam as mãos que deram origem ao mundo, hoje a opção é verdadeiramente minha!

Um grande abraço, querido amigo, você foi uma das poucas pessoas que realmente valeu a pena conhecer. Vou à luta, Anúbis me espera na esquina do inferno com uma cerveja gelada nas mãos, vou indo.

Com afeto,

Júlio

Abandona a caneta sobre o papel e se dirige ao espelho, sobre a pia a arma que escolheu para se matar. Um tiro pelo céu da boca será mortal, ao menos para isso serviram os longos anos na faculdade de medicina. Posiciona a arma, sente o cano frio penetrando a boca, a língua saboreando o gosto do metal…toca a campainha. Quem será a esta hora da manhã? Pousa a arma, vai até à porta, a vizinha está lá com aquele sorrizinho de pecado, aquelas coxas do lado de fora, aqueles cabelos negros e sedosos…

Volta para a carta:

PS: Querido Miguel, acho que adiarei a morte por mais um dia, as mãos que criaram o mundo são mesmo diabólicas, nem morrer eu posso mais!


Autora: Soror O. Naob

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