À Mulher Escarlate Todo o Poder é Dado

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Hoje eu recebi um chamado muito forte da resina estoraque. É uma resina super negra e profunda. É fumaça, é encruzilhada, mistério e inversão. O perfume fica do negro mais profundo e lindo quando usamos ela.

Todo meu processo criativo, de uma certa forma, acompanha os momentos pelos quais estou passando em minha vida. Tenho feito muita imersão na minha adolescência. Eu era muito trevosa, do punk pro gótico, anarquista, juventude transviada, chafurdava e adorava! Tudo era vivido intensamente, extremos se encontravam na mais ampla entrega, sem medo da morte. Era por isso que eu vivia tanto, chegando a correr riscos mil. Era um gozo pelo limiar, pela beirada, pelo “quase” morrer. Sim, não posso dizer que vivi nessa época as pulsões de uma vida criativamente colorida. Mas através da unilateralidade desse excesso de pulsão de morte, uma vida criativa do espiritual se desenvolvia no subterrâneo, sem que eu percebesse. Faz sentido aqui nos lembrar que Freud fala que o princípio de Nirvana é súdito da pulsão de morte.

Tive um sonho antes da epidemia, onde uma horda de homens de moto clube, que representavam uma praga, com toda aquela caricatura de casaco de couro com taxinhas, eram os mais perversos do mundo. Eles vinham em enxurrada após saquear supermercados e cometerem todos os tipos de crimes hediondos possíveis conforme passavam pelas cidades.

Até que o líder, “o mais perverso de todos” do grupo, falava que não teria mais como eles fugirem, pois finalmente teriam que fazer “a parte deles”; uma “operação” muito importante e visceral que só a eles competia.

Ele então pegava uma taça negra e um bastão e o mergulhava no vinho, enquanto se masturbava e gozava, ao mesmo tempo em que se crucificava em uma cruz de Leviatã (ou cruz do enxofre) INVERTIDA.

Um segundo, em uma cruz EM PÉ, fazia o mesmo com a taça e o bastão, se masturbava e se crucificava.

O terceiro se crucificava em uma cruz DEITADA, após fazer exatamente a mesma operação ritualística de todos os outros. E de repente, me dava conta de que eu estava ali na cruz, em um vestido de seda vermelho, esperando para fazermos sexo ali, deitados

Aí dava o estalo: a mulher como um elemento de uma operação hermética que consiste em encarnar eras espirituais no mundo. Como se a presença dessas mulheres escarlates sempre estivessem na história afora, mesmo quando apagadas nas narrativas das eras e religiões dos “senhores patriarcas”. Como se sempre tivesse havido mulheres operando os desígnios das dialéticas históricas, como avatares das Leis Dela que regerão o mundo durante determinados períodos.

A alegoria da mulher escarlate é essa: a corporeidade que contém a qualidade de unir os opostos dentro de si, tal qual a cruz da matéria que une os quadrantes opositores e elementos complementares. O feminino não é uma antítese de um masculino, como sempre se diz. Essa visão corrobora dualismo, divisão — raiz da dor.

O feminino tem caráter “para além” do que conceituamos como sendo simplesmente o contrário do masculino. Porque ele é um a priori, o círculo mágico que abarca os polos contraditórios e complementares de si mesma. O feminino tem caráter andrógino. É a própria rosa da cruz , onde ela se encontra e assimila a si, promovendo existência. Tal qual o ouroboros: cabeça mordendo a cauda. Falar que o feminino é só a cauda ou a só cabeça da serpente, seria o mesmo que negar o todo da serpente, que são ambas as potências de uma só vez, resultando no círculo. “O todo é maior que a soma das partes” — princípio da Gestalt que muito revela sobre a natureza do feminino — Ela é o todo aqui e agora, em mim e para além.

E quem me conhece sabe que vivo martelando no quanto as alegorias espirituais foram apagando o feminino e o tornando tão, mas tão hermético, se não inexistente. Ou muitas vezes pateticamente justificadas pelo silêncio, como se apenas esse silêncio já fosse a explanação auto caracterizante da qualidade do feminino, de cuja música tão silenciosamente secreta só os “eleitos” mais sensíveis fossem capazes de ouvir.

É claro que o silêncio possui chaves de dimensões mistéricas, mas há que separar com clareza quando essa chave se mistura ao gênero mulher. Ou reduz uma Deusa ao silêncio, pura e simplesmente. Caso contrário, não passará de táticas neurolinguísticas domesticadoras, se arvorando em argumentos de poder iniciáticos em mãos de homens, para que a mulheridade se esqueça do quanto a força de materializar magias de um modo tão poderoso e rápido, nada secreto, pertence potencialmente à nós.

Foi jogo político e institucional se infectando e se misturando nos meandros das verdades espirituais mais íntimas e óbvias, ligadas aos nossos corpos e a nossa capacidade sensorial super aguçada. Mas AINDA BEM que o inconsciente coletivo, em toda a sua atemporalidade e riqueza nos relembra e nos inicia nessas imagens primordiais e arquetípicas, que eles insistem em apagar com a força e ignorância do masculino desequilibrado e recalcado perante tal potência feminina.

Já tenho falado um pouco sobre o fato de a cruz dos elementos ser a própria Maria Madalena na alegoria do cristianismo. Não façamos análises literais. Não estou propondo fatos históricos, e sim simbólicos e arquetípicos. Ou melhor, estou fazendo uma análise psicológica de uma das narrativas mais massificadas da nossa era, que desvelam e simbolizam uma teleologia — uma meta. Independente de qualquer apreço, ou não pelo Cristianismo, o ato de analisar mitologicamente narrativas é uma coisa, apoiar instituições religiosas dominadoras, é outra. Então:

Mater — matéria. Cruz — campo cartesiano deflagrando altitude e longitude.

Só tem latitude e longitude aquilo que preenche um espaço no tempo, ou seja, aquilo que existe na matéria. Quando traçamos a encruza, estamos falando da localização de algo que é. E algo existe, porque houve união dos opostos ali, sempre. E a qualidade feminina é esta: ser esses opostos ao mesmo tempo que os abarca, os sustenta, os une e os encarna. O feminino é onipresente, é ponte, é tudo e nada, assim como Nuit nos fala:

Agora, portanto, Eu sou conhecida entre vós pelo meu nome Nuit, e por ele através de um nome secreto que Eu lhe darei quando finalmente me conhecer. Uma vez que Eu sou o Espaço Infinito e as Infinitas Estrelas deste, fazei vós também assim. Nada ateis! Que não se faça diferença entre vós e uma coisa e qualquer outra coisa; pois disto resulta dor.

Liber AL vel Legis

Na alegoria clássica do cristianismo, Maria Magdalena apenas aparece velando Jesus em seu martírio de crucificação. Eles foram divididos e não se fala da operação de amor de ambos. Ela, que é própria cruz de Malkhut, a princesa prometida do grande mar de Binah encarnando uma operação suprasensível, fazendo a ponte entre céu, terra e submundo.

Dentre partes dos meus devaneios místicos, é por causa deles que estou prestes a parir um perfume de profundo estoraque negro, com rosas vermelhas e o que mais de ingredientes me pedirem pra entrar nesse caldeirão. Abri aqui um pouco de minha intimidade onírica e mística, para que tenham uma ideia do processo criativo por detrás de um frasco de perfume. Nesse em especial está sendo um resgate de um feminino profundo e ancestral tentando elaborar os motivos pelos quais ele se misturou e promoveu o patriarcado. Desígnios da não-dualidade, misteriosos e que só a Deusa sabe. As águas negras e vermelhas estão se revolvendo prometendo revoluções de contorções uterinas.


Autora: Soror Maat

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