Vamos falar de Aleister Crowley. Sim, é isso mesmo. O tal do “Homem Mais Perverso do Mundo”.
Pois é, a coisa não é simples. De um lado, você tem a imprensa sensacionalista e os grupos religiosos pintando o cara como o capeta em pessoa. Do outro, uma legião de fãs, de ocultistas a estrelas do rock, tratando o sujeito como um messias da contracultura. E agora? Em quem a gente acredita?
A resposta, gente, é: em nenhum dos dois. A verdade, como sempre, é muito mais complicada e, sinceramente, muito mais interessante. Para entender quem diabos foi Aleister Crowley, a gente precisa deixar de lado tanto o pânico moral quanto o fã-clube. Precisamos fazer uma coisa que dá trabalho: analisar o homem, sua obra e seu legado com um olhar crítico, pragmático e sem medo de encarar as contradições. E olha que são muitas.
E a ideia aqui é exatamente fazer uma análise crítica. Um mergulho fundo na figura que foi, ao mesmo tempo, um gênio da sistematização ocultista e um ser humano profundamente problemático. Vamos separar o joio do trigo, a obra do autor, a filosofia da biografia.
Então, prepare um café, abra a mente e venha comigo desvendar essa figura que, até hoje, causa mais polêmica do que episódio final de série famosa.
Afinal, quem é esse tal de Crowley?
Vamos botar as cartas na mesa. Aleister Crowley (que na verdade se chamava Edward Alexander Crowley) é uma das figuras mais complexas e polarizadoras da história recente. Tentar coloca-lo numa caixinha é perda de tempo, até porque ele passou a vida toda chutando todas as caixinhas que encontrava.
O cara não era só um “ocultista”. Ele foi poeta (e dos bons), romancista, provocador, um alpinista de elite que encarou o K2 e o Kanchenjunga (pense no Everest, só que pior), enxadrista de primeira, pintor, crítico literário e, talvez, até espião. Essa lista de “profissões” não é só currículo de LinkedIn vitoriano; era uma estratégia. Crowley estava deliberadamente construindo uma persona que explodia a ideia de que você tem que ser uma coisa só na vida.
Claro que o que pegou mesmo foi o apelido que a imprensa britânica deu pra ele: “o homem mais perverso do mundo”. Esse título grudou feito chiclete no sapato e ofuscou todo o resto. Crowley virou o pôster boy da depravação, da libertinagem e do anticristianismo. E aqui vai o primeiro segredo: ele adorou. Sabe o “falem mal, mas falem de mim”? Pois é.
Essa fama não foi um acidente. Foi uma mistura perfeita do pânico da sociedade vitoriana (que morria de medo de sexo, de novas ideias e do declínio da religião) com a performance calculada do próprio Crowley. Ele era um mestre do marketing pessoal numa época em que essa palavra nem existia.
E a prova disso é que ele abraçou a ofensa. Quando a própria mãe, numa tentativa de controle, o chamava de “A Grande Besta 666”, ele não chorou no cantinho. Ele pegou o apelido e transformou em marca registrada. Foi uma jogada de mestre de jiu-jitsu cultural: ele usou o estigma como escudo e a difamação como megafone. A polêmica não era um problema; era o motor de divulgação de Thelema. Ele sacou, muito antes de todo mundo, que numa sociedade careta, o jeito mais rápido de ficar famoso é sendo um transgressor profissional.
O irônico? O mesmo cara que era o vilão para os jornais de sua época virou santo para a contracultura do século XX. Ocultistas, artistas, metaleiros e até escritores famosos começaram a ver Crowley não como um depravado, mas como um profeta da liberação sexual e espiritual. O auge foi quando a fuça dele apareceu na capa do álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” dos Beatles, em 1967. Ele estava lá, de boas, ao lado de gente como Carl Jung e Oscar Wilde.
Jimmy Page, do Led Zeppelin, foi além: comprou a Boleskine House, que era a antiga casa mal-assombrada do Crowley na beira do Lago Ness, e começou a publicar os livros dele. No Brasil, a dupla Raul Seixas e Paulo Coelho (sim, aquele Paulo Coelho, antes de virar guru de autoajuda) virou a maior garota-propaganda da Thelema, adaptando as ideias do “Carecão” para o rock brasileiro dos anos 70.
Essa esquizofrenia – de demônio da depravação a santo padroeiro da contracultura – mostra por que a gente precisa de um filtro. Então, para esta análise, vamos focar no que a academia diz. O roteiro desta live foi construído a partir de artigos de pesquisadores sérios, teses de mestrado e doutorado em história, antropologia e estudos de religião, e biografias escritas por gente que usa até nota de rodapé para escrever. O objetivo é te dar uma visão equilibrada, sem demonizar e sem endeusar. Deu pra sacar?
E, sim, é possível. Mas, para isso, a gente precisa de rigor. Estudar Crowley é como andar num campo minado. De um lado, você tem os detratores que o pintam como um vilão de desenho animado. Do outro, aqueles devotos, que a gente apelida de Crowleititas, que o tratam como um profeta que nunca errou. Ambos estão errados.
Para não cair em nenhuma dessas valas, nossa base aqui são fontes confiáveis. Isso inclui os trabalhos de biógrafos sérios como Lawrence Sutin, Richard Kaczynski e Tobias Churton, que passaram anos fuçando os diários, as cartas e os documentos do próprio Crowley com método de historiador, não de fã. Também vamos olhar para o que têm da dizer dele as próprias organizações por onde ele passou, como aqui a própria a Ordo Templi Orientis e a Astrum Argentum, fundada por ele. São grupos que guardam os arquivos e, hoje em dia, até promovem debates acadêmicos sobre o legado do Crowley. Tipo… isso que estamos fazendo agora.
É importante entender que o estudo acadêmico do esoterismo é uma coisa nova. Até pouco tempo atrás, esse era um assunto que a universidade tratava como piada. Graças a estudiosos como Antoine Faivre e Wouter Hanegraaff, o “Esoterismo Ocidental” virou um campo de pesquisa legítimo. Isso permitiu que figuras como Crowley fossem analisadas não como “magos” ou “charlatões”, mas como intelectuais complexos que dialogavam com as grandes questões do seu tempo.
Porque, veja bem, Crowley não era só um cara que fazia rituais esquisitos. Ele era um produto do modernismo europeu. Foi um poeta com dezenas de livros publicados, tradutor de gente como Baudelaire e do “Tao Te Ching”, um ensaísta que escrevia sobre tudo, de arte a política, e um alpinista que quebrava recordes no Himalaia.
Então, para entender o cara, a gente precisa de uma abordagem multidisciplinar. É preciso olhar para a Cabala que ele estudou, para os traumas de infância que ele carregava, para a sociedade vitoriana que ele tanto queria chocar e para as ideias de filósofos como Nietzsche e Schopenhauer que ele claramente leu. Só juntando todas essas peças a gente começa a montar o quebra-cabeça.
A Origem da Fera
Edward Alexander Crowley nasceu em 1875, no coração da Inglaterra vitoriana, uma época tão reprimida que até as pernas das mesas usavam saias. A família dele era da alta burguesia, com uma grana que vinha da cervejaria da família. O pai, também Edward, era tão rico que se aposentou cedo para se dedicar em tempo integral à sua verdadeira paixão: pregar. E não estamos falando de pregos.
E ele não pregava em qualquer igreja. Os Crowley eram membros da Irmandade de Plymouth (Plymouth Brethren), uma seita cristã fundamentalista que fazia a ala mais radical dos evangélicos de hoje parecer um grupo de hippies. Para eles, a Bíblia era literal, o Apocalipse estava virando a esquina, e o resto do mundo era um poço de perdição. Era um ambiente totalitário, onde cada pensamento e cada ato eram vigiados pela patrulha da moral divina.
Nesse “Big Brother” religioso, o pequeno Crowley foi submetido a um regime de opressão psicológica pesada. O pai o forçava a ler a Bíblia por horas, memorizar versículos e passar por interrogatórios sobre o estado de sua alma. Ironicamente, essa imersão forçada deu a ele um conhecimento enciclopédico das Escrituras, que ele usaria mais tarde para subverter o cristianismo com a precisão de um cirurgião.
Mas, na época, a experiência gerou uma repulsa visceral. A educação religiosa não produziu fé, produziu revolta. A negação de qualquer autonomia, a demonização do corpo e da sexualidade, a culpa constante… tudo isso foi o combustível para a rebelião que definiria sua vida.
O ponto de virada aconteceu em 1886, quando ele tinha onze anos. O pai morreu de câncer na língua (a ironia cósmica não perdoa, né?). Com a morte do pai, a situação piorou. Ele ficou sob a tutela de um tio, Tom Bishop, que era um sujeito muito bacana – isto é, se você considera bacana usar punições físicas e humilhação como método pedagógico. A mãe, Emily, em vez de proteger o filho, mergulhou ainda mais no fanatismo e foi quem começou a chamá-lo de “Besta do Apocalipse” sempre que ele mostrava um pingo de personalidade.
Do ponto de vista psicológico, é aqui que está a chave para entender tudo o que veio depois. Toda a vida e obra de Crowley podem ser vistas como uma gigantesca revolta arquetípica contra a “Lei do Pai”. Ele não estava se rebelando só contra o pai biológico, o tio abusivo ou a mãe fanática. Ele estava se rebelando contra a ideia de qualquer autoridade imposta de fora, incluindo a maior de todas: o Deus cristão.
A busca de Crowley por um sistema onde a única lei é a sua “Verdadeira Vontade” interna é o espelho exato dessa experiência. Onde a Irmandade de Plymouth dizia “Seja feita a Tua vontade”, Crowley responderia “Faz o que tu queres”. Não foi coincidência; foi o projeto de uma vida inteira de libertação psicológica.
Acontece que, apesar de toda a opressão (ou talvez por causa dela), Crowley era um crânio. Foi para as melhores escolas e acabou no Trinity College, na Universidade de Cambridge. Lá, ele começou a construir deliberadamente sua persona pública: a do esteta decadente, do dândi transgressor, do provocador profissional. Pense em Oscar Wilde, mas com menos teatro e mais ocultismo.
Crowley mergulhou de cabeça no movimento Fin-de-siècle, explorando temas de erotismo, blasfêmia e espiritualidade alternativa. Ele se vestia de forma extravagante, tinha relações com homens e mulheres (isso numa época em que a homossexualidade podia te levar para a cadeia) e publicava poesias que fariam sua avó vitoriana desmaiar.
Agora, é crucial entender: isso não era só ele “sendo ele mesmo”. Era uma performance calculada, uma forma de política identitária radical. Ele usava o próprio corpo e comportamento como armas contra a hipocrisia e a normatividade da sua época.
Ao mesmo tempo, ele começou sua jornada no esoterismo. Em 1898, ele entrou para a Ordem Hermética da Aurora Dourada (Hermetic Order of the Golden Dawn), a “Hogwarts” dos ocultistas da época. Era a maior e mais influente sociedade esotérica, uma espécie de “universidade do oculto” que misturava Cabala, alquimia, Tarot, astrologia e vestia tudo isso em uma quantidade nababesca de mitologia egípcia.
E lá, Crowley era um aluno prodígio. Com uma baita inteligência e memória fotográfica, ele subiu os degraus da Ordem numa velocidade assustadora, impressionando até o chefão, Samuel Liddell MacGregor Mathers.
Claro que isso gerou treta. Esse progresso rápido e a lealdade a Mathers criaram um baita ciúme em outros membros importantes, como o poeta William Butler Yeats (que achava Crowley um perigoso desequilibrado) e o esoterista Arthur Edward Waite (que o considerava um charlatão imoral).
A raiz desse conflito era filosófica. Crowley queria resultados práticos, experimentais. Ele criou seu próprio sistema de magia e chamou “Magick” (com ‘k’ mesmo) Para ele, magia não era um hobby intelectual ou um conjunto de metáforas bonitinhas; era uma tecnologia espiritual para transformar a consciência e o mundo. E era o que ele se via fazendo O resto da galera, na visão dele, estava lá só brincando de sociedade secreta.
Isso tudo explodiu em 1900, num evento que ficou conhecido como o “Cisma da Golden Dawn”. A ordem se partiu, e Crowley, que ficou do lado de Mathers, acabou sendo expulso. Aliás, esse padrão – entrar num grupo, brilhar, causar um racha e sair – se repetiria por toda a sua vida.
Porém, o evento que mudou tudo mesmo na vida do Crowley aconteceu no Cairo, em 1904. Ele estava em lua de mel com sua primeira esposa, a Rose Edith Kelly. Ela não sabia chongas de ocultismo, mas de repente, depois de umas operações mágicas para chamar silfos que o Crowley fez e deu com os burros n’água, a Rose começou a entrar em transe, dizendo que umas entidades egípcias queriam falar com ele.
Crowley resolveu testar a esposa para ver se ela não estava ficando lelé da cuca. Fez um monte de perguntas sobre simbolismo egípcio e, para seu espanto, Rose, que nunca tinha aberto um livro de egiptologia, o levou até o Museu do Cairo e apontou para uma peça específica, a “Estela da Revelação”, que, por “coincidência”, tinha o número de catálogo, na época, de 666. Para Crowley, que já usava 666 como seu número mágico pessoal, aquilo foi um sinal.
Seguindo as instruções que Rose recebia em transe, nos dias 8, 9 e 10 de abril, sempre do meio-dia à uma da tarde, Crowley trancou-se em seu quarto e lá ele recebeu, por um tipo de ditado telepático, um texto chamado Liber L vel Legis, ou O Livro da Lei, que mais tarde teria o seu nome corrigido para Liber AL vel Legis.
A mensagem, segundo ele, veio de uma inteligência não-humana (ou praeter-humana, seja lá o que for isso) chamada Aiwass. Mais tarde, Crowley diria que Aiwass era seu próprio Sagrado Anjo Guardião – um conceito que vem da magia renascentista e que se refere a uma espécie de “Eu Superior” ou gênio pessoal. Isso é importante: a revelação não vinha de um deus externo, mas da sua própria essência mais profunda. Ao longo do tempo, Crowley mudou essa visão, indo e vindo, várias vezes, de modo que, atualmente, não dá para saber se ele realmente entendeu o que havia acontecido lá. Curiosamente, no próprio Livro da Lei, é dito que ele não entenderia completamente mesmo.
Para quem caiu de paraquedas aqui, esse livro é dividido em três capítulos, cada um narrado por uma divindade egípcia reinterpretada: Nuit (o infinito, o espaço), Hadit (o ponto individual, a consciência de cada um) e Hórus, uma divindade dual composta por Ra-Hoor-Khuit e Hoor-paar-kraat (a força que nasce da união de Nuit e Hadit, representando a energia de uma nova era).
A frase central, a big idea de Thelema, está logo no primeiro capítulo: “Faze o que tu queres será o todo da Lei.”
Mas, peraí, não saia por aí fazendo o que der na telha”
Crowley insistia que isso não era uma licença para o hedonismo barato. A “Vontade” aqui não é seu desejo de comer um pote de sorvete às três da manhã. É a sua Verdadeira Vontade, aquela estrutura mais fundamental de quem você é quando tira todas as camadas de condicionamento social, medos e expectativas dos outros.
Crowley declarou que essa revelação marcava o início de uma nova era para a humanidade: o Aeon de Hórus. Na sua filosofia da história, passamos pelo Aeon de Ísis (a era da Deusa-Mãe, matriarcal), pelo Aeon de Osíris (a era do Deus-Pai, do sacrifício, das religiões como o Cristianismo) e agora estávamos entrando no Aeon de Hórus, a era da Criança Coroada, do indivíduo soberano. Sim, dá para ver aqui uma farpinha do pensamento liberal do Hayek e do Rand, mas há controvérsias quanto a isso.
E para que ninguém achasse que era só bagunça, o livro completa a Lei com um segundo preceito fundamental: “Amor é a lei, amor sob vontade.” Isso significa que a liberdade individual é absoluta, mas deve ser exercida com responsabilidade e consciência. O Amor verdadeiro, segundo Thelema, chamado de Ágape, só acontece quando cada um está alinhado com seu propósito autêntico. A harmonia social não viria de regras impostas, mas da interação de indivíduos que estão vivendo suas verdadeiras naturezas.
E assim nasceu Thelema. Um sistema que joga fora os dogmas e a moralidade externa e coloca a responsabilidade total no colo de cada um. O trabalho da sua vida? Descobrir essa tal de Verdadeira Vontade. E aí, Zezinho, é que a jornada começa.
A Caixa de Ferramentas do Novo Aeon
Ok, então Thelema é sobre encontrar e fazer sua Verdadeira Vontade. Mas como, diacho, você faz isso? A resposta de Crowley foi: com Magick. E, como eu disse, ele botou um “k” no final de propósito.
Primeiro, para diferenciar do ilusionismo, dos truques de cartas e de tirar coelho da cartola. Segundo, para dar uma piscadela para o conhecimento antigo (o “k” tem várias camadas de significado, incluindo referências ao grego e à Cabalá, que não são o tópico aqui).
A definição clássica dele é um primor de pragmatismo: “Magick é a Ciência e a Arte de causar Mudança de acordo com a Vontade.”
Então, vamos desmontar essa frase, que é praticamente um manual de instruções:
- Ciência: Crowley insistia que Magick não era superstição. Tinha que ter método. Você cria uma hipótese (ex: “se eu fizer o ritual X, vou conseguir o resultado Y”), executa o experimento, anota tudo num diário com o rigor de um cientista de laboratório, observa os resultados e ajusta a teoria. A única diferença é que o laboratório é você mesmo.
- Arte: Ao mesmo tempo, não é só seguir uma receita de bolo. Exige intuição, criatividade, timing. É a diferença entre um cozinheiro que segue a receita à risca e um chef que cria com os ingredientes.
- Causar Mudança de acordo com a Vontade: Aqui está o pulo do gato. Qualquer ato intencional é um ato mágico. Escrever um e-mail para conseguir um emprego é magia. Chamar alguém pra sair é magia. A diferença entre isso e um ritual cheio de velas e incenso é só o grau de foco e simbolismo. Magick, então, não é algo separado da vida; é a própria vida, vivida com intenção total – e isso faz uma baita diferença.
A maior contribuição de Magick, na minha opinião, foi ter “psicologizado” a magia. Crowley estava lendo Freud, Jung, William James e toda a galera da psicologia que estava bombando na época. Ele pegou os conceitos antigos de demônios, anjos e espíritos e os reinterpretou como forças dentro da nossa própria psique. O secretário dele, Israel Regardie, era psicólogo clínico.
Pense assim: invocar um “demônio” num ritual pode ser entendido como trazer à tona um complexo reprimido, uma parte sombria de você mesmo, para poder olhar na cara dele, entendê-lo e integrá-lo. Não é sobre fazer pacto com o tinhoso, é sobre fazer as pazes com seu próprio porão psicológico. Essa abordagem permitiu que pessoas modernas e racionais pudessem usar essas técnicas sem ter que acreditar literalmente em um universo de fantasia medieval. Magick virou uma forma de psicologia transpessoal, décadas antes de o termo ser sequer inventado.
O sistema mágico de Crowley parece um curso de culinária fusion. Ele pegou o que achava de melhor no misticismo oriental (Yoga, meditação budista) e no ocidental (Cabala, rituais herméticos) e cozinhou tudo junto. Para Crowley, as técnicas de meditação do Oriente eram o treinamento de base, o fortalecimento do núcleo mental para que as práticas mais dramáticas do Ocidente pudessem funcionar sem que o praticante surtasse.
E, no fim das contas, a ênfase é sempre na experiência direta. Não adianta ler mil livros sobre natação; uma hora você tem que pular na piscina. Para Crowley, a verdade espiritual é a mesma coisa. Você tem que experimentar por si mesmo.
Mas Crowley não deixou suas ideias soltas no vento. Ele as organizou em duas Ordens, que funcionam de maneiras diferentes, mas complementares. E aqui a gente faz uma pausa para falar um pouquinho dessas duas.
A∴A∴ (Astrum Argentum – a Estrela de Prata)
Fundada em 1907, a A∴A∴ foi a resposta de Crowley à bagunça em que a Golden Dawn tinha se transformado. A missão? Nada menos que “o avanço da humanidade através da perfeição do indivíduo”. Sem pressão.
O sistema é um mapa detalhado para o autoconhecimento, usando a Árvore da Vida da Cabala como GPS. Cada “esfera” (Sephirah) e cada Caminho na Árvore representa um estágio de desenvolvimento psicológico e espiritual que o iniciado precisa dominar.
A estrutura é super individualista. Cada membro só tem contato com seu instrutor (o cara de cima) e, eventualmente, com seus alunos (a galera de baixo). Não tem reunião de condomínio, não tem presidente, não tem política interna. A ideia era evitar as disputas de ego que destruíram a Golden Dawn e manter o foco 100% no trabalho individual. É o caminho do “faça você mesmo”, mas com um mentor para tirar dúvidas.
As práticas são um combo de meditação, estudo de filosofia, rituais e, o mais importante, a busca pelo “Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião” – que, como vimos, é o encontro com seu Eu mais profundo, sua Verdadeira Vontade.
O.T.O. (Ordo Templi Orientis – Ordem do Templo do Oriente)
A O.T.O. é outra história. Crowley não a fundou, ele a “hackeou”. A ordem já existia na Alemanha, meio que como uma maçonaria alternativa com um foco em magia sexual. Quando o líder da O.T.O., Theodor Reuss, conheceu Crowley, ele reconheceu o potencial do cara e o colocou no topo da filial britânica.
Crowley, então, reescreveu todos os rituais e a filosofia da O.T.O. para que ela se tornasse o veículo principal de divulgação da Lei de Thelema.
Se a A∴A∴ é solitária e focada no trabalho interno, a O.T.O. é social e fraternal. Ela usa rituais em grupo, que funcionam como peças de teatro simbólicas, para transmitir ensinamentos e criar um senso de comunidade. É um sistema que ensina “por alegoria e símbolo”, criando experiências que um livro não consegue passar.
A estrutura de graus lembra a Maçonaria, mas o conteúdo é puro Thelema. E é nos graus mais altos da O.T.O. que os ensinamentos explícitos sobre Magia Sexual são transmitidos. O que nos leva ao próximo ponto…
Pois é, vamos falar da parte que todo mundo fica curioso. A Magia Sexual é, sem dúvida, um dos aspectos mais controversos e mal compreendidos do trabalho de Crowley. Mas também é um dos mais revolucionários.
Acadêmicos como Hugh Urban veem o sistema de Crowley como uma fusão de duas abordagens históricas da sexualidade: a ars erotica do Oriente (onde o sexo é um caminho para a iluminação) e a scientia sexualis do Ocidente (a tentativa moderna de classificar e analisar o sexo cientificamente). Crowley basicamente aplicou o método científico à arte erótica.
Pense comigo: em plena era vitoriana, um período de repressão sexual doentia, o cara estava:
- Afirmando que a homossexualidade e a bissexualidade eram expressões válidas da natureza humana (enquanto a lei britânica as tratava como crime).
- Defendendo a autonomia e o prazer sexual das mulheres.
- Explorando práticas não-convencionais como ferramentas para atingir estados alterados de consciência.
- Argumentando que todo ato sexual, se feito com consciência e alinhado à Vontade, é um ato sagrado.
Ele estava décadas, talvez um século, à frente do seu tempo. A ideia de usar a energia mais potente do corpo humano – a libido, a energia sexual – como combustível para a transformação espiritual não era só sobre prazer, era sobre pragmatismo. É como usar a energia de um reator nuclear para iluminar uma cidade.
A O.T.O. institucionalizou isso, ensinando nos seus graus superiores como usar o sexo e o orgasmo de forma ritualizada para fins mágicos e espirituais. Essa ideia influenciou uma penca de movimentos que vieram depois, desde a Wicca (o fundador, Gerald Gardner, era membro da O.T.O.) até as comunidades modernas de tantra e sexualidade sagrada.
Mas, e sempre tem um mas com o Crowley, a teoria era linda, mas a prática… nem tanto. Seus escritos muitas vezes objetificam as mulheres, e sua vida pessoal era um desfile de relacionamentos abusivos e manipuladores. A libertação sexual que ele pregava no papel nem sempre se aplicava às suas parceiras na vida real. É a velha história: faça o que eu digo, não o que eu faço. E essa contradição é uma das grandes “manchas negras” em sua biografia e é preciso reconhecer isso.
Thelema no Divã da História
Por que uma filosofia tão esquisita e nascida na cabeça de um cara tão controverso conseguiu sobreviver e até crescer nos séculos XX e XXI? Simples: Thelema chegou na hora certa. Ela é quase que perfeitamente adaptada ao nosso mundo moderno, individualista e meio perdido.
Pense na nossa época: as religiões tradicionais estão em crise, as comunidades estão fragmentadas, a autoridade ruiu, e todo mundo está numa busca frenética por um “propósito”. Vide a profusão de coaches que tem por aí. E aí chega uma filosofia que te diz: “Pare de procurar lá fora. A resposta está aí dentro. Você não é um pecador miserável precisando de salvação. Você é, em essência, uma estrela, um deus. Sua missão é descobrir isso e viver de acordo.”
É um marketing espiritual genial.
Crowley, que tinha lido Nietzsche e entendeu o recado, estava oferecendo uma alternativa direta ao que ele chamava de “fórmula do estado servil” do Cristianismo. Onde a religião tradicional prega humildade, obediência e culpa, Thelema prega soberania, autoconhecimento e responsabilidade radical. A ideia de uma “aristocracia espiritual”, onde cada um é rei ou rainha do seu próprio universo, é um antídoto avassalador para a sensação de impotência que muita gente sente hoje.
Já do ponto de vista da psicologia, Thelema é um manual de “autoatualização”, para usar o termo de Maslow. É sobre realizar seu potencial máximo. E a estrutura das ordens como a A∴A∴ e a O.T.O. oferece algo que a sociedade moderna tirou de nós: um caminho claro de desenvolvimento, com ritos de passagem, troca honesta de informação e um senso de comunidade. Numa era sem rituais, as iniciações esotéricas preenchem um vazio psicológico enorme.
Aqui temos uma das maiores ironias da vida de Crowley. Ele dizia que queria democratizar o conhecimento esotérico, tirar das mãos de uma elite e tornar acessível a todos. Belo objetivo, não é? O problema é que o diacho do homem escrevia de um jeito quase impossível de entender.
Os textos que ele deixou são complexos, cheios de alusões a coisas que ninguém conhece, com uma linguagem dramática e um milhão de referências à Cabala, astrologia e mitologia. Para um leigo, ler Crowley é como tentar montar um armário com o manual de instruções em aramaico antigo: um tanto quanto frustrante.
Esse estilo acabou reforçando a imagem dele como um megalomaníaco que se achava o novo messias. A complexidade que deveria dar um ar de profundidade acabou criando uma barreira.
Ele mesmo parece ter percebido essa falha no fim da vida. Quando já estava velho, doente e quebrado, vivendo numa pensão, ele escreveu Magick Without Tears (Magia Sem Lágrimas). Esse livro é uma série de cartas respondendo a dúvidas de discípulos, e nele Crowley finalmente tenta ser claro, direto e didático. É talvez a melhor porta de entrada para seu pensamento, justamente porque ele deixou a pose de profeta de lado e falou como um professor. Pena que chegou tarde demais para consertar décadas de textos obscuros.
O Balanço Final – Gênio ou Babaca?
A resposta honesta é: os dois. Qualquer análise séria de Crowley exige colocar na balança suas contribuições inegáveis e suas falhas de caráter monumentais. Vamos fazer isso de forma organizada.
Crowley não foi só um provocador. Ele foi um dos maiores sistematizadores do esoterismo ocidental. Ele pegou um monte de tradições fragmentadas e obscuras e as transformou em um sistema coerente e praticável para o público moderno.
- Doutrina Pragmática: A Lei de Thelema, com seu foco na Verdadeira Vontade e no “amor sob vontade”, é uma estrutura ética poderosa. Ela oferece uma alternativa tanto à moralidade de rebanho das religiões quanto ao niilismo do “vale tudo”. Ela te dá um norte moral (sua Vontade), mas diz que a bússola para encontrá-lo está dentro de você. Isso é radicalmente contemporâneo.
- Epistemologia Mágica: Ao tratar a magia como um método experimental, ele a salvou de virar mera superstição. Essa abordagem influenciou tudo o que veio depois, de Wicca a Magia do Caos e Satanismo, e abriu caminho para toda uma série de práticas esotéricas compatíveis com uma mente cética e científica.
- A Ponte Oriente-Ocidente: A fusão de Crowley de Yoga e meditação com Cabala e magia cerimonial foi pioneira. Ele antecipou em décadas a explosão do interesse ocidental pelas práticas orientais e criou um modelo para espiritualidades globais.
- O Tarot de Thoth: O baralho de Tarot que ele criou com a artista Lady Frieda Harris é considerado uma obra-prima. É mais do que um oráculo; é um compêndio visual de todo o sistema mágico, religioso e filosófico thelêmico, é um “dicionário de símbolos” de uma densidade e beleza impressionantes.
- Vanguarda Sexual: A defesa de Crowley da libertação sexual numa época de repressão total foi histórica. Embora sua prática pessoal fosse um desastre (já chegamos lá), só as suas ideias já teóricas ajudaram a pavimentar o caminho para a revolução sexual que viria décadas depois.
- Ícone Pop: Queiramos ou não, Crowley se tornou um ícone cultural. Dos Beatles a Raul Seixas, passando por Jimmy Page e Ozzy Osbourne, sua imagem e suas ideias permearam a cultura popular, tornando-se um símbolo duradouro de rebelião e individualismo.
O legado de Crowley acaba sendo vasto e multifacetado, com um baita impacto em diversas áreas do pensamento moderno e da espiritualidade ocidental. Mas agora, precisamos falar do lado sombrio. E não, não é sobre pactos com o demônio. É sobre coisas bem mais mundanas e, por isso mesmo, piores.
Caráter Nível “Tóxico”
Fora isso, múltiplas fontes, incluindo gente próxima a ele, descrevem Crowley como um “valentão e um bastardo”. Ele era manipulador, egocêntrico a um nível patológico e explorava financeiramente seus seguidores. Ele ensinava a transcendência do ego, mas seu próprio ego era do tamanho de um planeta.
Além do mais, suas relações com as mulheres eram um show de horrores. Ele as tratava como objetos para seus experimentos mágicos e as descartava com uma frieza assustadora. Várias de suas parceiras tiveram colapsos nervosos, e uma de suas esposas, a Rose Kelley, quase morreu num hospício. É a contradição suprema: um profeta da libertação que, na prática, escravizava emocionalmente as pessoas ao seu redor.
O Desastre da Abadia de Thelema
A “Abadia de Thelema”, uma comuna que ele fundou na Sicília em 1920, era para ser uma utopia. Virou o “Fyre Festival” do ocultismo. O lugar era imundo, as drogas corriam soltas e a dinâmica era de um culto tóxico centrado na figura do líder.
A tragédia aconteceu em 1923, quando um sujeito que vivia lá, Raoul Loveday, morreu de uma infecção contraída ao beber água contaminada de um riacho. Crowley, que desconfiava da medicina, não procurou ajuda adequada. A esposa de Loveday, Betty May, voltou para Londres e contou histórias cabeludas (e provavelmente exageradas) para os tabloides, incluindo sacrifícios de gatos e rituais de sangue.
O escândalo foi tão grande que o governo fascista de Mussolini o expulsou da Itália (pense nisso: os fascistas acharam Crowley extremo demais). Foi esse episódio que cimentou sua reputação de “homem mais perverso do mundo” e revelou um fracasso ético fundamental: na hora do “vamos ver”, seu ego e seus experimentos vinham sempre antes do bem-estar de seus seguidores. A negligência que levou à morte de Loveday não foi um acidente, foi o resultado de uma arrogância colossal.
E Agora? O que a gente faz com esse legado?
Mais de 70 anos depois de sua morte, Aleister Crowley continua sendo um enigma. Ele não foi só gênio nem só farsante. Foi um iconoclasta brilhante e um ser humano profundamente falho. Mas suas realizações intelectuais sobreviveram às controvérsias de sua vida pessoal, o que é notável.
O legado de Thelema persiste porque ele ressoa com a nossa época. Sua adaptabilidade (é tipo um “Android” do esoterismo, você pode instalar diferentes “apps”), sua promessa de empoderamento individual e sua abordagem psicológica da magia tornam Thelema atraente para a mente pós-moderna. As ordens que ele liderou, a A∴A∴ e a O.T.O., continuam ativas no mundo todo, inclusive no Brasil. Oi! Estamos aqui!
No fim das contas, o que realmente dura não é a figura caricata da “Besta 666”. Isso sempre foi mais marketing do que filosofia. O que dura é a questão central que ele colocou na mesa: a busca pela Verdadeira Vontade.
A pergunta que Thelema nos deixa não é se Crowley era o anticristo. A pergunta de verdade é: é possível que a gente viva nossa Vontade mais autêntica com responsabilidade e amor? É possível sermos reis e rainhas de nós mesmos sem nos tornarmos tiranos egoístas e indiferentes ao sofrimento dos outros?
Essa questão, gente, continua aberta. E a resposta não está num livro ditado no Cairo há mais de cem anos. Está nas escolhas que cada um de nós faz, todos os dias.
A tensão entre as ideias geniais de Crowley e seu comportamento deplorável nos joga no meio de um debate filosófico quentíssimo: dá pra separar a obra do autor? A resposta curta é: sim, e é a única forma inteligente de lidar com isso. Vamos usar três ferramentas conceituais para entender como.
Roland Barthes e a “Morte do Autor”
Começamos com o crítico francês Roland Barthes, que disse que, para entender um texto, a gente precisa “matar o autor”. Calma, não é pra sair caçando escritores. A ideia é que, uma vez que uma obra é publicada, ela não pertence mais a quem a escreveu. Ela pertence ao leitor.
Tentar entender um livro fuçando a biografia do autor é, para Barthes, uma perda de tempo. O que importa é o que o texto provoca em você. O sistema da Árvore da Vida que Crowley organizou funciona ou não funciona como um mapa para a mente, independentemente do fato de ele ser um narcisista. As técnicas de meditação que ele compilou são eficazes ou não, independentemente de ele ter sido um péssimo marido. A obra ganha vida própria. Isso não é passar pano para as falhas dele; é dar autonomia à ideia.
Michel Foucault e a “Função-Autor”
Já Michel Foucault nos convida a pensar no nome “Aleister Crowley” não como uma pessoa, mas como uma etiqueta, uma “hashtag” (#Crowley) que organiza um monte de textos, ideias e práticas. O Foucault chamava isso de “função-autor”, o que nos ajuda a agrupar o material.
Podemos, ao mesmo tempo, estudar o homem Crowley, com todas as suas falhas, como um objeto de análise histórica, de estudo biográfico.. E, em paralelo, podemos usar as ferramentas do “arquivo Thelêmico” que ele organizou, adaptando, reinterpretando e até mesmo criticando o material original. Uma coisa não anula a outra. Foucault também diria que Crowley foi um “fundador de discursividade”: ele não só escreveu suas obras, mas criou um campo inteiro (Thelema) onde outras pessoas podem continuar a criar e debater. A tradição está viva e pertence aos praticantes, não ao fundador morto.
A Escola do New Criticism e o Foco no Texto
Essa escola de crítica literária, popular na metade do século XX, era ainda mais radical. Para eles, a única coisa que importa é o texto, e ponto final. A biografia, as intenções do autor, o contexto histórico? Tudo isso é irrelevante, são “falácias” que nos distraem.
A analogia aqui é boa: pense numa obra como o motor de um carro. Para saber se o motor é bom, eu não preciso saber se o engenheiro que o projetou era um santo ou um canalha. Eu analiso o motor: sua performance, seu design, sua eficiência. Da mesma forma, um sistema filosófico ou mágico deve ser julgado por seus próprios méritos: sua coerência, sua profundidade, sua utilidade. Confundir o criador com a criação é um erro de categoria.
Síntese Pragmática
Essas três ideias nos dão uma saída sofisticada para o dilema. Podemos – e devemos – fazer as duas coisas:
- Criticar o homem: Reconhecer, documentar e condenar as falhas éticas de Crowley. Sua crueldade, seu egoísmo, sua negligência. Isso é honestidade histórica.
- Analisar a obra: Estudar, e até usar, as contribuições intelectuais que ele deixou. Sua filosofia, seus métodos, seus sistemas simbólicos. Isso é rigor intelectual.
Essa distinção é crucial. Ela permite que um thelemita de hoje confronte o legado sombrio do fundador sem ter que jogar fora toda a tradição. Permite que um acadêmico estude Crowley seriamente sem ser acusado de endossar seu comportamento. Permite que qualquer um de nós aprenda algo com um sistema complexo sem ter que venerar uma figura moralmente falha.
No fim, o legado de Crowley é exatamente como ele: complexo, provocador e cheio de contradições. E talvez seja exatamente por isso que ele continua tão fascinante. Thelema não nos dá respostas fáceis. Thelema nos deixa com perguntas difíceis. E isso, pessoal, é a marca de um pensador que vale a pena levar a sério, mesmo quando o homem por trás do pensamento era, muitas vezes, difícil de engolir.
Conclusão
Uma coisa que volta e meia se pergunta é: se Crowley foi assim alguém tão ruim, por que diabos alguém seria thelemita? Por que seguir um sujeito misógino, egocêntrico, manipulador e tão notavelmente tóxico.
Primeiro, porque reduzir Crowley apenas a seus aspectos negativos é simplificar a coisa de forma meio infantil. No fim das contas, ele apenas se junta a um clube que inclui nomes como, por exemplo, Albert Einstein. Se a sua visão de Einstein é a do tiozinho com a língua para fora, dê uma lida nos diários dele de sua viagem ao Brasil que essa visão vai mudar rapidinho. Ou pesquise como ele apagou a contribuição da própria esposa no trabalho dele. Sim, ele era outro grandíssimo babaca.
Mas, e aí? Vamos jogar fora a teoria da relatividade também? Ou a da gravitação (porque Isaac Newton era outro). Vamos queimar os quadros de Pablo Picasso, deixar de ouvir Richard Wagner, queimar os livros de Charles Dickens e os filmes de Alfred Hitchcock? E não esqueça de jogar fora o seu iPhone porque o Steve Jobs não era nenhum santo. Ah, sim, por falar em “santos”, pare de colocar frases de Mahatma Gandhi no seu Instagram. Todos eles (e muitos outros) foram seres humanos que apresentaram características de personalidade no mínimo execráveis. Mas cujos gênios inegavelmente trouxeram contribuições relevantes à humanidade como um todo.
Crowley era um deles. Um ser humano complexo, contraditório, falho. E também um gênio, visionário, que mudou e moldou muito do que entendemos hoje do mundo. Alguém que reescreveu os parâmetros da magia e da sociedade para uma realidade muito mais adaptada à nossa atual do que àquela em que ele vivia. Mas que, por outro lado, parece que não soube viver por esses mesmos parâmetros que havia estabelecido.
Essa é a importância de separar a obra do autor: não jogar fora o bebê com a água do banho.
É importante termos uma visão crítica dos seres humanos por detrás das obras, lembrando que eles são exatamente isto: seres humanos – com falhas e acertos -, não figuras a serem cultuadas e divinizadas.
Ser um thelemita é ser alguém que está em busca de si mesmo, de encontrar e realizar seu propósito de vida pelo entendimento de si e da forma como se relaciona com o mundo. É buscar um objetivo mais elevado do que a mesquinharia de nosso dia a dia, respeitando a si e ao outro. Ser um thelemita não significa imitar Crowley ou sequer endossar seus comportamentos tóxicos. Você não precisa gostar do ser humano Edward Alexander Crowley para admirar a obra do Profeta Aleister Crowley.
Fora isso, é importante lembrar que Thelema hoje não é igual à Thelema de 100 anos atrás. É um pensamento, uma religiosidade que evoluiu, adaptou-se, encontrou novos caminhos através do trabalho de outros autores que vieram depois de Crowley.
Thelemitas não são seguidores. Thelemitas encontram seu próprio caminho no mundo. E é por isso que Thelema não pertence a Crowley. Nunca pertenceu. Thelema pertence a você.
E você não precisa ser babaca para ser thelemita.
Fontes de Referência
- Perdurabo, Revised and Expanded Edition, 2002 – Richard Kaczynski
- Manon Hedenborg White: Proximal authority the changing role of Leah Hirsig in Aleister Crowley’s Thelema, 1930. Aries – Journal for the Study of Western Esotericism 21 (2021), 69-93
- Varieties of Magical Experience: Aleister Crowley’s Views on Occult Practice, 2011 – Marco Pasi
- Aleister Crowley, um mago na tradução, 2017 – Jornal Opção (Goiás)
- Magia(k) em Teoria e Prática, de Aleister Crowley: tradução direta do original britânico, organização, introdução, estudo preliminar, edição e notas, 2017 – Luana Camila de Souza Lima (UEAM, AM)
- Thelema em Aleister Crowley: Magick e Ciência em Religião, 2018 – Humberto Miranda de Campos (UFJF, MG)
- Aleister Crowley: The Biography, 2011 – Tobias Churton
- The Cambridge Handbook of Western Mysticism and Esotericism, 2016 – Woulter Hanegraaf
- The Magicians of the Golden Dawn: A documentary history of a magical order, 1972 – Ellic Howe
- Aleister Crowley: Magick, rock and roll and the wickedest man in the world, 2014 – Gary Lachman
- A History of the Plymouth Brethren, 1901 – Willian Neatby
- Magia Sexual de Aleister Crowley: Interfaces entre a ars erotica e a scientia sexualis, 2016 – Emmanuel Ramalho – Revista Último Andar 28
- A Morte do Autor, 1967 – Roland Barthes
- Arqueologia do Conhecimento, 2002 – Michel Foucault
