Resumo
Este artigo examina Babalon, uma das figuras mais intrigantes (e controversas) do sistema thelêmico de Aleister Crowley. Longe de ser apenas mais uma deusa esotérica, Babalon representa um fascinante paradoxo: ela é simultaneamente a “Grande Mãe” acolhedora e a “Grande Prostituta” transgressora. Este estudo explora como essa figura aparentemente contraditória funciona como um poderoso símbolo de transformação espiritual, desde suas origens na rebelião adolescente de Crowley contra sua mãe religiosa até suas ressignificações contemporâneas por comunidades feministas e LGBTQIA+ que descobriram nela uma aliada inesperada na luta contra o patriarcado.
As Origens: De vilã bíblica a heroína thelêmica
A Grande Transformação Simbólica
Para entender Babalon, precisamos primeiro conhecer sua “versão original” – a Prostituta da Babilônia do Apocalipse. No texto bíblico, ela aparece montada numa besta de sete cabeças, vestida de púrpura e escarlate, segurando uma taça dourada cheia de… bem, coisas que fariam até um marinheiro corar. Tradicionalmente, essa figura representava tudo o que estava errado com o mundo: corrupção, luxúria, idolatria.
Crowley olhou para isso e pensou: “Espera aí, por que ela tem que ser a vilã? E se ela for na verdade a grande heroína da história?” Foi uma inversão brilhante. Em vez de destruir santos, Babalon os liberta. Em vez de representar corrupção, ela representa a coragem de transcender limitações morais artificiais. A Besta que ela monta não é mais sua inimiga, mas seu parceiro de dança cósmico.
É como se Crowley tivesse reescrito Star Wars fazendo Darth Vader ser o verdadeiro herói que estava tentando libertar a galáxia do puritanismo dos Jedi (ok, reconheço não ser o autor dessa ideia). Uma mudança de perspectiva completa que transforma todo o significado da história.
O Contexto Psicológico: Terapia Através da Teologia
A história pessoal de Crowley ajuda muito a entender essa transformação. Quando ele tinha 11 anos, seu pai morreu, deixando-o sozinho com uma mãe que se tornou ainda mais rígida e controladora. Emily Crowley não era exatamente o tipo de mãe que você gostaria de levar para conhecer seus amigos – especialmente se esses amigos fossem demônios.
Imagine a seguinte cena: você é um adolescente questionador em uma família vitoriana ultra-religiosa. Sua mãe, furiosa com suas perguntas “impertinentes” sobre a Bíblia e comportamentos pouco convencionais, aponta o dedo para você e declara: “Você é a Besta do Apocalipse!” A maioria das crianças teria corrido para o quarto chorando. Crowley correu para o quarto pesquisando.
Claro, um historiador estaria tendo convulsões com essa visão um tanto quanto colorida da juventude de Crowley. Mas serve para ilustrar como é que a coisa se passava na cabeça dele.
Porque, de um ponto de vista psocológico, foi dos traumas de Crowley por ter nascido em uma comunidade um tanto quanto fanática religiosa e, ainda por cima, sendo criado por uma mãe um tanto cruel que muito do que viria a, anos mais tarde, ser Babalon, nasceu – não de uma revelação mística pura, mas de um dos casos mais épicos de “eu vou mostrar para vocês” da história do ocultismo. Crowley pegou a Prostituta da Babilônia, o símbolo máximo da depravação na tradição cristã, e disse: “Esta é minha deusa”. Foi como transformar o maior insulto de sua mãe em seu maior poder mágico.
As Visões Enochianas: Quando o Simbolismo Ganha Vida
A revelação completa de Babalon não veio de uma única experiência, mas através de uma série de visões obtidas usando o sistema mágico Enochiano – uma espécie de “telefone divino” desenvolvido no século XVI pelo Dr. John Dee (que também era matemático e espião da rainha Elizabeth I, porque aparentemente naquela época você não podia ter apenas um emprego). E nesse trabalho já se antevê a figura de Babalon, mas ainda como a Prostituta da Babilônia bíblica, não ainda como a deusa que hoje conhecemos.
Claro que o sistema de Dee não tinha nada a ver com Thelema, na verdade, refletia toda uma cosmovisão cristã (até porque na época e lugar, não tinha outra). Crowley pegou esse sistema, deu uma banana para a cosmovisão cristã e enfiou a thelêmica nele no lugar. Ao invés de usár o Enochiano para saber qual a opinião de um bando de anjos sobre como eram as coisas, usou para explorar os 30 Æthyrs ou “paraísos”, como se estivesse subindo níveis em um videogame espiritual, em um processo de iluminação contínuo e progressivo. A grande diferença é que em vez de coletar moedas de ouro, ele estava coletando insights sobre a natureza da realidade e encontrando deusas transformadoras.
A revelação de Babalon manifestou-se progressivamente através dos Æthyrs. No 14º Æthyr (LIK), foi revelada a grafia precisa “Babalon” (distinguindo-a da “Babilônia” bíblica). No 12º Æthyr (ZOM), Crowley visualiza-a como Guardiã do Abismo, “mulher” que é tanto portal para iluminação quanto Mãe das Abominações. A visão detalha o “mistério de suas prostituições”, onde ela “cedeu a si mesma a tudo o que vive”, tornando-se “Senhora de Todos” através de sua “servidão a cada um”.
No 9º Æthyr (ZIM), surge a Filha de Babalon, descrita como Virgem do Eterno, representando nova consciência nascida da dissolução do ego. Esta progressão transforma a travessia do Abismo de experiência singular em ato de cosmogonia, onde o adepto se torna participante ativo unindo-se à deusa para manifestar novo universo.
Imaginem receber essa visão: uma deusa que abraça literalmente tudo – o bom, o mau, o feio, o bonito, o santo, o profano. Ela não discrimina, não julga, simplesmente aceita. Para alguém criado em uma religião obcecada com pureza e condenação, isso deve ter sido como encontrar água no deserto. E esta se tornou a questão da Grande Prostituta: não uma figura de depravação, de sexo selvagem em roupa de couro, mas do mais puro, completo e absoluto Amor, um Amor que transforma o ego de quem a alcança e a ela se entrega na mesma plenitude em um novo ser, um Bebê cósmico que renasce em seu útero.
A Questão da “Prostituta Sagrada”: Desmascarando um mito antigo
O Problema com as Fontes Históricas
Antes de mergulharmos mais fundo na teologia de Babalon, precisamos falar sobre um elefante na sala: a ideia da “prostituta sagrada” na antiguidade. Por muito tempo, acreditamos que civilizações antigas tinham mulheres que se prostituíam nos templos como parte de rituais religiosos. Era uma história fascinante que aparecia em todos os livros sobre religião antiga.
Há apenas um problema: provavelmente nunca existiu.
Pesquisadores como Stephanie Budin e Julia Assante passaram décadas examinando evidências e chegaram a uma conclusão surpreendente: a “prostituição sagrada” é basicamente um mito urbano antigo que começou com Heródoto (que, convenhamos, às vezes era mais interessado em uma boa história do que em fatos verificados) e foi sendo perpetuado por 2.000 anos de má interpretação e wishful thinking.
É como aquela história que todo mundo “conhece” sobre como os vikings usavam capacetes com chifres – todo mundo acredita, aparece em todos os filmes, mas na verdade não há evidência arqueológica de que isso tenha acontecido (em tempo: capacetes com chifres vieram de óperas do século XIX, não de campos de batalha medievais).
O Que Realmente Existia: O Hieros Gamos
O que realmente existia na antiguidade era algo chamado hieros gamos – “casamento sagrado”. Mas isso era bem diferente da prostituição. Imagine mais como uma peça teatral cósmica onde um sacerdote-rei e uma sacerdotisa-rainha representavam a união de divindades como Inanna e Dumuzid.
O objetivo não era sexual, mas simbólico: garantir que a terra fosse fértil, as colheitas abundantes e a comunidade próspera. Era como um ritual de boa sorte em escala civilizacional. Nada de dinheiro trocando de mãos, nada de prostituição – apenas uma encenação sagrada para manter o cosmos funcionando adequadamente. Mas, principalmente, nada da ideia da submissão de uma mulher a um homem para que este tivesse algum tipo de experiência divina.
Babalon: Uma “Prostituta” Diferente
Então, se a prostituição sagrada histórica provavelmente não existiu, o que faz de Babalon uma “prostituta sagrada”? A resposta é que ela redefine completamente o conceito.
Babalon é “prostituta” não porque entrega seu corpo a um barbudo, mas porque se entrega completamente a tudo que existe. Ela não discrimina – aceita santos e pecadores, heróis e vilões, homens e mulheres, o sublime e o ridículo. É uma receptividade universal sem julgamentos.
Mas – e este é um “mas” importante – ela cobra um preço muito específico por essa união: seu sangue. Não sangue literal (embora alguns praticantes tenham interpretado assim), mas o “sangue” simbólico que representa seu ego, sua identidade, tudo que você pensa que é.
É como se ela dissesse: “Quer minha aceitação total? Quer experimentar o amor incondicional? Perfeito. Mas você vai ter que deixar para trás tudo que pensa que sabe sobre si mesmo.” Não é exatamente uma transação comercial tradicional.
A Jornada do Adepto: Como se tornar Ninguém para se tornar Tudo
O Cálice Flamejante: Mais que uma Metáfora
O símbolo central de Babalon é seu cálice dourado – não uma simples taça, mas um verdadeiro Graal que ela ergue em chamas de amor e morte. Este cálice representa uma das ideias mais radicais em todo o esoterismo: que a verdadeira transformação espiritual requer a completa dissolução do ego.
Pense nisso como um alquimia psicológica extrema. Na alquimia tradicional, você pega chumbo (matéria bruta) e o transforma em ouro através de vários processos, incluindo a nigredo – literalmente “enegrecimento” ou putrefação. O Cálice de Babalon funciona da mesma forma: você “despeja” seu ego nele, ele passa pela dissolução completa. Não é que o ego deixe de existir, mas o que emerge é algo completamente transformado.
A parte mais interessante? Babalon não força ninguém a sacrificar o ego seu Cálice. Ela simplesmente existe no Abismo – aquele vazio existencial que separa a consciência comum da iluminação – oferecendo a opção. É como se ela dissesse: “Aqui está o caminho. Se quiser atravessar, você sabe o preço.”
O Bebê do Abismo: Renascimento Cósmico
O que acontece depois que você “morre” no Cálice de Babalon é onde as coisas ficam realmente interessantes. Você não simplesmente desaparece – você renasce como o “Bebê do Abismo.” É como respawnar em um videogame, exceto que agora você tem um avatar completamente diferente.
Este “bebê” não é uma criança literal, mas um novo tipo de consciência que transcendeu a dualidade e a identidade individual. É você, mas não é você. É como se a pessoa que você era fosse um personagem em uma peça, e agora você descobriu que é na verdade o ator que estava interpretando o personagem o tempo todo.
A metáfora do “útero” de Babalon é perfeita aqui. Assim como um bebê precisa do útero materno para se desenvolver, esta nova consciência precisa do “útero” da deusa para crescer até estar pronta para emergir completamente transformada.
A Cidade das Pirâmides: Destino Final dos Transformados
O destino final desta jornada é a “Cidade das Pirâmides” – que soa como algo de um filme de fantasia, mas na verdade representa um estado de consciência onde todos os adeptos que passaram por essa transformação residem coletivamente.
As pirâmides são símbolos perfeitos aqui porque representam tanto estabilidade (essas estruturas duram milênios) quanto transformação (elas eram, afinal, construídas para facilitar a jornada dos mortos para uma nova vida). A “cidade” sugere que a iluminação não é uma experiência solitária, mas algo que conecta você a uma comunidade de consciências transformadas. Um grupo de homens, mulheres, pessoas não binárias, seja o que for, que passou a enxergar o mundo sob uma nova perspectiva.
É como se depois de passar pelo processo mais individual e solitário imaginável – a dissolução completa do seu ego – você descobrisse que não está sozinho, mas faz parte de algo muito maior.
Babalon no Tarô: Um mapa visual da transformação
A Sequência Iniciática nas Cartas
Crowley e Lady Frieda Harris criaram o Tarô de Thoth não apenas como um baralho divinatório, mas como um mapa visual completo da jornada espiritual thelêmica. Quatro cartas específicas contam a história da aproximação e união com Babalon de forma quase cinematográfica.
A Alta Sacerdotisa (II): Nossa história começa aqui, com a necessidade de olhar para dentro. É como o primeiro ato de um filme onde o protagonista percebe que há algo mais na vida além da rotina diária. A Sacerdotisa representa aquele momento de “espera, há algo que não estou vendo aqui?”
A Imperatriz (III): Esta é a “porta” – literalmente, já que a carta corresponde à letra hebraica Daleth. É quando você começa a entender que existe um princípio criativo feminino poderoso no universo, algo bem diferente das imagens limitadas da feminilidade que a sociedade nos oferece.
O Carro (VII): Aqui as coisas ficam sérias. Esta carta representa o momento em que você desenvolve disciplina e vontade suficientes para enfrentar o Abismo. Note que o auriga no Tarô de Thoth (que é uma representação de Hórus, a divindade representativa do novo Eon) não tem rédeas – ele controla as esfinges opostas apenas com a força de sua Vontade.
Luxúria (XI): A grande final. Esta é Babalon em toda sua glória, montando a Besta e segurando o cálice flamejante. Mas preste atenção na expressão corporal dela – não é lasciva ou maliciosa. É radiante, alegre, quase brincalhona. Ela não está forçando ninguém; está simplesmente oferecendo a transformação final com um sorriso.
A Inversão das Expectativas
O que é brilhante nesta sequência é como ela inverte completamente nossas expectativas sobre poder e feminilidade. A jornada começa com introspecção passiva (Sacerdotisa) e termina com uma figura feminina ativa e poderosa (Luxúria/Babalon) que oferece a transformação mais radical possível.
E note que em nenhum momento Babalon é apresentada como vítima ou como servindo aos propósitos de outra pessoa. Ela é claramente a figura no comando, aquela que detém as chaves para a transcendência. É uma inversão completa do arquétipo da “donzela em perigo” que domina tantas tradições espirituais.
A Era Moderna: Quando Babalon encontra o Século XX
Jack Parsons e o Perigo do Literalismo
A história de Babalon no século XX tem alguns capítulos fascinantes, incluindo um que serve como excelente exemplo de “como não fazer magia”. Jack Parsons, cientista de foguetes e praticante thelêmico, decidiu que queria literalmente invocar Babalon para a Terra física. Não como experiência interior, não como trabalho psicológico, mas como uma mulher real que seria a encarnação da deusa.
O resultado foi a “Operação de Babalon” – um ritual elaborado que incluiu música de Prokofiev, magia Enochiana e uma viagem ao deserto de Mojave. Parsons acreditava ter sucesso quando conheceu Marjorie Cameron, uma artista que ele imediatamente declarou ser a manifestação de Babalon.
O problema? Cameron não sabia de nada disso. Ela foi essencialmente tratada como um “elemento” a ser invocado, não como uma pessoa com agência própria. Parsons transformou um arquétipo de empoderamento feminino em um objeto de fantasia masculina. Foi como tentar usar uma Ferrari como carrinho de mão – tecnicamente você pode tentar, mas vai perder completamente o ponto.
A falha de Parsons é instrutiva porque mostra o que acontece quando você perde de vista a natureza simbólica e psicológica dos arquétipos espirituais. Babalon não é uma mulher para ser encontrada “lá fora” – ela é uma força transformadora para ser encontrada dentro da própria consciência.
A Revolução Feminista: Babalon Se Liberta de Seus Criadores
Aqui é onde a história fica realmente interessante. A partir dos anos 1990, algo notável aconteceu: mulheres e pessoas da comunidade LGBTQIA+ começaram a reivindicar Babalon para si mesmas, transformando-a de uma fantasia masculina em um símbolo genuíno de empoderamento.
A pesquisadora Manon Hedenborg White documentou esta transformação em seu trabalho etnográfico. O que ela descobriu foi fascinante: praticantes femininas estavam ativamente reescrevendo o significado de Babalon, desafiando interpretações históricas e criando novas formas de se relacionar com o arquétipo.
O “ofício” da Mulher Escarlate – que na visão de Crowley era um cargo nomeado por uma figura masculina – tornou-se algo “auto-nomeado.” Mulheres não esperavam mais que algum homem as declarasse “Mulher Escarlate”; elas simplesmente assumiam o título baseadas em sua própria experiência e autoridade.
É como se Babalon tivesse finalmente escapado das limitações de seus criadores originais e encontrado sua voz autêntica. A deusa que sempre foi sobre transcender limitações finalmente transcendeu as limitações de sua própria tradição.
Babalon e a Comunidade Queer: Transcendendo Binários
Para a comunidade LGBTQIA+, Babalon oferece algo especialmente poderoso: um arquétipo divino que não se encaixa em categorias binárias tradicionais. Ela não é nem “donzela” nem “puta” no sentido convencional – ela transcende completamente essa dualidade artificial.
A jornada iniciática de dissolução no Cálice de Babalon ressoa fortemente com experiências de transição e fluidez de gênero. A ideia de “morrer” para uma identidade antiga e renascer como algo novo é uma metáfora poderosa para qualquer pessoa que tenha questionado ou transcendido as categorias de gênero que lhe foram atribuídas no nascimento.
Além disso, a receptividade universal de Babalon – sua aceitação de tudo que existe sem julgamento – oferece uma alternativa refrescante às tradições religiosas que historicamente marginalizaram pessoas queer. Aqui está uma deusa que literalmente abraça tudo, incluindo aspectos da sexualidade e identidade que outras tradições consideram “abominações.”
As Contradições Produtivas de Babalon
O Paradoxo do Poder Feminino
Uma das tensões mais interessantes em Babalon é como ela simultaneamente serve e domina. Na narrativa thelêmica tradicional, seu papel parece ser facilitar a jornada do adepto (implicitamente masculino). Mas olhando mais de perto, ela é claramente quem tem o poder na relação.
Pense nisso: ela é quem estabelece os termos da transformação. Ela é quem possui a chave para a transcendência. O adepto pode escolher se aproximar dela, mas não pode ditar as condições da união. É como se ela fosse uma professora de arte marciais extremamente poderosa – ela vai te ensinar, mas apenas se você estiver disposto a seguir completamente as regras dela.
Esta dinâmica inverte completamente as expectativas tradicionais sobre poder e gênero. Em vez do típico “herói masculino salva donzela passiva,” temos “figura feminina poderosa oferece transformação ao ego masculino disposto a se submeter completamente.”
Libertação Através da Rendição
Outro paradoxo fascinante é como Babalon oferece libertação através da rendição total. Ela não liberta você dando-lhe mais poder sobre sua vida; ela o liberta destruindo completamente sua identificação com qualquer vida particular.
É como se ela dissesse: “Quer ser livre? Perfeito. Primeiro você vai ter que desistir de tudo que pensa que quer libertar.” É uma forma muito radical de terapia – em vez de fortalecer o ego, ela oferece transcendê-lo completamente.
Esta abordagem ressoa com tradições místicas ao redor do mundo que enfatizam a rendição do ego como caminho para a iluminação. Mas Babalon adiciona uma dimensão única: ela torna este processo sensual, celebratório, até mesmo divertido. Não é uma renúncia sombria, mas uma festa cósmica da transformação.
Conclusão: O Fogo Escarlate continua queimando
Em sua jornada de transformação, Babalon apresenta uma das mais belas e importantes características de Thelema: a capacidade de se auto-analisar, se transformar e de readequar a um novo olhar sobre o mundo. E olha como ela mostra que esta jornada se faz na pessoa, na divindade ou mesmo no pensamento thelêmico como um todo!
Babalon começou como a solução criativa de um adolescente rebelde para um problema familiar complicado. Aleister Crowley transformou o maior insulto de sua mãe puritana em sua maior fonte de poder mágico, criando uma deusa que desafiava tudo que sua educação religiosa representava.
Mas arquétipos poderosos têm vida própria. Babalon cresceu além das intenções de seu criador, tornou-se maior que suas origens psicológicas, transcendeu até mesmo as limitações de sua própria tradição. Ela provou que símbolos genuinamente transformadores não ficam presos às circunstâncias de sua criação.
Hoje, Babalon continua sendo uma força subversiva – não mais apenas contra o cristianismo vitoriano, mas contra qualquer sistema que tente limitar a expressão autêntica da sexualidade, espiritualidade ou identidade. Ela se tornou uma aliada para qualquer pessoa disposta a questionar autoridades artificiais e abraçar sua própria transformação radical.
O Fogo Escarlate de Babalon queima mais brilhante que nunca, iluminando caminhos para tipos de liberdade que nem mesmo Crowley poderia ter imaginado. E talvez isso seja exatamente o que toda boa deusa deveria fazer – superar constantemente as expectativas de seus devotos e continuar oferecendo possibilidades de transcendência que ainda não conseguimos nem sonhar.
Afinal, que tipo de deusa seria se pudéssemos controlá-la completamente? Babalon permanece perigosa, impredizível e transformadora – exatamente como deveria ser. O Abismo ainda está lá, o Cálice ainda está flamejante, e o convite para a dissolução e renascimento continua aberto para qualquer um corajoso o suficiente para aceitar.
Bibliografia
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