Apontamentos Sobre a Prática Ritual.

Quando se trata de Ocultismo, observa-se uma indesejável confusão entre superstição e conhecimento apresentados sob a aparência do empirismo. A crença avança camufladamente sobre o campo do simbólico e reclama para si o título de “científica”. De um lado, o rapto de termos da ciência moderna intentando explicar conceitos que há muito se assentaram como lugar comum na prática mágicka, como “plano astral”, “energia” e “clarividência”, furtivamente dogmatizam a Magia em seu plano teórico. De outro, posturas que replicam instruções ou releituras pessoais como autoridades pseudolegitimadas pelo tempo de prática individual dogmatizam a Magia prática. Dessa forma, o aspecto individual da ritualística é condicionado a um conhecimento absoluto a priopri, que eleva o particular ao status de geral e reduz a riqueza de possibilidades da experiência singular com o ritual a uma verdadeira homogeneização de sua práxis.

É sim necessário que, na prática do sistema mágicko, sejam utilizados termos e conceitos da sua linguagem própria. Porém, é importante que evitemos cair na armadilha do cientificismo (gerador de pseudociência), compreendendo-se que a ciência moderna encerra conceitos que não se comunicam, e jamais se comunicaram, com a Magia. Definir “plano astral” e “energia mental” a partir de conceitos próprios da Física Quântica, por exemplo, é apropriar-se indevidamente de um campo de conhecimento completamente distinto que possui abordagens e vias próprias, além de esgotar a possibilidade de compreensão pessoal destes termos, cujas elaborações devem ser inerentes ao trabalho necessário que cada qual estabelece por si só.

Inegavelmente, a prática ritual está intrinsecamente relacionada à natureza humana, pois se trata de uma forma primordial que acompanhou e viabilizou o desenvolvimento da linguagem no homem. Sob a ótica thelêmica, entendemos que natureza humana é sinônimo de singularidade irreplicável, o que significa dizer que cada indivíduo possui sua maneira personalíssima de realização e percepção dos elementos da ritualística.

Nessa propedêutica, a ritualística é entendida como uma ferramenta através da qual o próprio Gênio do indivíduo pode vir a se manifestar, e por isso mesmo, afirmações insofismáveis de que os símbolos devam ser percebidos ou visualizados de uma forma específica representam um esvaziamento da utilidade do ritual. É claro, não significa dizer que não há direcionamentos gerais que possam ser inferidos do próprio rito, ou instruções objetivas sobre a natureza do resultado que se possa esperar:

O sucesso em “banimento” é conhecido por uma “sensação de limpeza” na atmosfera; o sucesso em “invocação”, por um “sentimento de santidade”. É lamentável que estes termos sejam tão vagos.

(Liber O vel Manus Sagittae, cap. IV)

Entretanto, apesar de “lamentável”, se esses termos fossem completamente definidos a priori, correríamos o grande risco de: (1) macular a singularidade da experiência ritual pelo sugestionamento do resultado a ser esperado e (2) rejeitar toda sensação que se pareça incongruente com o esperável, descartando-as como desprovidas de sentido.

Ora, não somente a experiência dessas vagas definições destacadas acima é individual e única, como também o caminho percorrido pelo ritual até elas. Arrepios específicos; sensações de queda; sinestesias com as cores das chamas do pentagrama (ou com suas formas); sussurros no ouvido; surtos de imagens oníricas; surtos de calma ou emoção… Todos estes fatores, já verificados em práticas do RMP, por exemplo, configuram o resultado de uma união única do praticante para com os símbolos evocados. Por isso mesmo, devem ser objetivamente anotados e analisados quanto à sua persistência ou manutenção durante a consistência da prática pelo tempo.

A definição, ou ato de definir, é um atributo da linguagem do eu consciente (do ego, da mente), linguagem esta que foi desenvolvida nos primórdios da humanidade em conjunto com o próprio ritual. Com o avanço irrefreável do pensamento racionalista, houve o desencantamento do mundo, que, do ponto vista junguiano, representa o divórcio da psique para com as suas origens inconscientes. Podemos dizer que o ritual mágicko como o entendemos hoje, foi um dos atos que representaram o seu “reencantamento”, tão necessário nos dias atuais conforme nos afirma James Hillman. Em outras palavras, o ritual foi originado pelo ser humano em conjunto a com a sua própria linguagem, em uma era primitiva em que o mundo desconhecido era povoado por seres fantásticos que representaram uma expressão simbólica de sua própria psique mais profunda. Hoje, o ritual é resgatado com sua função Mágicka para a religação (“religare”, origem da palavra religião) com o elemento fantástico ou inconsciente, que havia sido relegado ao plano da superstição pelo avanço da linguagem cartesiana que intentou a mecanização do ser e do mundo. Com a diferença que, amadurecidos pela compreensão ampliada da natureza e da Iniciação, os rituais contemporâneos trazem à baila fórmulas mais sofisticadas e adequadas ao atual momento de desenvolvimento da humanidade (Novo Éon). Eles foram, pois, naturalmente desenvolvidos com objetivo de transcender a racionalidade do ego e tocar o substrato psíquico que o subjaz, consistindo em um verdadeiro retorno da consciência às suas origens e, para esse fito, utilizou-se do símbolo.

Jung define símbolo como “a imagem de um conteúdo [psíquico] em sua maior parte transcendente ao consciente” (JUNG, 2013), de forma que, ainda segundo o autor, todo símbolo possui um aspecto (inconsciente) inalcançável pela mente consciente, isto é, incapaz de ser explicado pela razão.

“[…] uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato.” (JUNG, 1969)

Esses conceitos são introduzidos por Jung para posteriormente explicar a funcionalidade dos símbolos nos sonhos. Para nosso propósito, eles nos orientam quanto à natureza do objeto ao qual a consciência é unida durante o ritual. Em outras palavras, do ponto de vista psicológico, a prática ritualística visa a utilização do símbolo enquanto ferramenta de união da consciência com a ideia nele encerrada, com fim de abarcar o que está além. Isso se dá porque a natureza do Mistério é a Gnosis – a experiência direta, a revelação ou transe místico, cujo método foi explorado, por exemplo, pela Teurgia de Jâmblico no início da era vulgar.

As observações a seguir são apontamentos cujo objetivo é enriquecer a prática ritualística de cada indivíduo, buscando ampliar a sua consciência sobre a mesma a fim de torná-la mais concentrada e eficiente.

Por fim, é importante salientar que o presente estudo não se trata de um fim em si mesmo, senão de uma reflexão de meio para possibilitar ao estudante em sua caminhada despertar o que Herman Hesse cunhou como sendo o conhecimento que borbulha no sangue e corre nas veias.

O que é ritual?

Ritual, segundo Richard Schechner: “[…] é o comportamento estilizado repetitivo e codificado, que comunica informações culturais sobre status e papéis, compreensão do mundo e experiência religiosa”. (SCHECHNER, 2003)

Em nosso contexto, estilização significa a abreviação de princípios metafísicos e conceitos filosóficos em palavras, figuras e atos. A prática da estilização é tão antiga quanto o desenvolvimento da própria linguagem, sendo inclusive umas das formas primitivas de comunicação. A pintura rupestre, por exemplo, é a forma primitiva de estilização de ideias.

Poderíamos dizer, por exemplo, que AMEN é uma versão estilizada da frase “Adonai Melech Neeman” (Senhor Deus Fiel), ou que “OM” é uma versão estilizada do conceito de vibração primordial do universo. Certamente, o ritual é recheado de “comportamentos estilizados”, cujos conceitos chaves são a base do que chamamos de “fórmulas mágickas”, algumas das quais são exemplificadas em Liber ABA. A expressão “I O” utilizada no Rubi Estrela, por exemplo, é uma estilização do conceito de união dos opostos para possibilidade da criação. O magista está “criando” a si mesmo, simbolicamente, nascendo de novo como um “Bebê do Abismo”, referências a processos espirituais alocados em lugares específicos da Árvore da Vida cabalística.

Ampliando essa definição, Victor Turner, antropólogo britânico, diz que o ritual também tem o propósito de “criar efeitos emocionais e cognitivos em participantes e observadores”. (TURNER, 1969).

Em um artigo da USP intitulado “O conceito de ritual em Richard Shechner e Victor Turner”, Grasielle Aires da Costa identifica os pontos em comum de ambas as definições acima apresentadas como sendo: liminaridade e transformação, fases comuns ao ritual em sentido lato. Como se pode ver, liminaridade e transformação configuram o verdadeiro mecanismo de funcionamento do rito no indivíduo:

  • LIMINARIDADE: resultado inicial das práticas do ritual. O indivíduo sofre um momento de separação para com o cotidiano, “saindo” da sua vida comum à medida que se utiliza de gestos, atos e visualizações ritualísticas que naturalmente o conduzirão ao processo seguinte.
  • TRANSFORMAÇÃO: Turner enfatiza que a vivência do ritual propicia uma retirada da “vestimenta” imposta pela sociedade, viabilizando ao indivíduo deparar-se com sua essencialidade primitiva, ocorrendo uma mudança de fora para dentro. Para Shechner, essa transformação ocorre no sentido inverso, ou seja, de dentro para fora, uma vez que, perpassada a liminaridade, o indivíduo se redefine através de uma postura interior que produzirá efeitos futuros na sua conduta exterior.

Para um recorte mais específico de ritualística mágicka, poderíamos dizer:

O ritual mágicko é um conjunto de atos dramatizados em gesto e imaginação, baseados em fórmulas que representam a mudança almejada.

Dentro dessa definição, podemos encontrar os seguintes baluartes da nossa prática ritualística, simbolicamente associados aos cinco elementos clássicos representados pelo pentagrama em um mecanismo de retro-funcionamento demonstrado adiante.

Características do ritual.

1. Gestos e Atos: representam o elemento TERRA. Os gestos são a materialização da ideia no corpo (corporificação de um conceito, fórmula ou princípio), e o conjunto de atos é o próprio corpo do rito: a sequência necessária que caracteriza o ritual enquanto tal. Requerem esforço e memorização.

2. Fórmulas: representam o elemento AR. Elas consistem nos conceitos filosóficos que residem por detrás do ritual: o complexo de informações que serão estilizadas em gestuais, simbologia e vocalização a serem corporificados acima. Requerem estudo e conhecimento.

3. Imagem: do latim, “IMAGO”, representa o elemento FOGO, pois a visualização visa “sutilizar” ou “transmutar” o ambiente percebido pelas vias comuns em um cenário simbólico composto pela intenção. A concentração adequada tem o condão de “sutilizar” o plano astral, ou sensibilizar a percepção do magista, mudando o foco da imagem plasmada no estofo mental (ambiente concreto, mundano, material) para aquele de caráter espiritual, místico, religioso, iniciático. Israel Regardie salienta que a chave para a magia cerimonial se resume em Vontade e Imaginação.

No ritual, a visualização consiste de imaginar símbolos (formas, cores e divindades) e deve ser realizada com extrema força de vontade. Assim, é também o elemento fálico do rito, equiparável ao princípio masculino (I). Essa conduta ativa do magista é naturalmente preenchida com uma impressão específica do ato realizado, cujo caráter não é controlado por sua vontade consciente e que representa o elemento feminino, intuitivo do rito (O). A sua combinação visa produzir um terceiro elemento que pode ser considerado como o próprio resultado da fórmula mágicka (PAN). Requer vontade e concentração.

4. Drama: o elemento de teatralização que gera sentimento, sensibilização e inspiração, e, portanto, simboliza o elemento ÁGUA. A performance teatral consiste em se colocar propositalmente em um estado interior de seriedade, inspiração ou outro, adequado ritual.

 A cura de um chakra desequilibrado consiste em submetê-lo à presença de objetos que tenham a mesma natureza, com vibrações equilibradas, a fim de equanimizá-lo. Da mesma forma, em escala maior, uma maioria de praticantes rituais em frenesi induzem uma minoria da congregação a atingir o mesmo estado mental extático, como é o exemplo dos Derviches. O mesmo é aplicável a sintomas contagiantes, como a força sexual (vide o mito das Bacantes), a alegria ou o desespero coletivos. Peter Caroll, por exemplo, propõe uma técnica de se forçar o riso diante de situações de aversão ou tristeza como uma forma de superar a emotividade do magista para além daquilo a que sua natureza humana ou social o condicionou a perceber como emotivo, flexibilizando-se em união e anulação de seus gostos com o seu oposto para atingir Kia.

Para nossa utilidade, o drama ritual é necessário como ponto de partida de uma indução de sentimentos harmônicos ao ritual, além da função de propiciar a liminaridade anteriormente explicada.

Outro exemplo prático seria o gritar feroz do banimento inicial do Rubi Estrela, o qual pode ser explicado pelo efeito biológico que o timbre de voz causa na estrutura cerebral responsável pelo condicionamento evolutivo (é sabido que o desenvolvimento da linguagem teve como fatores determinantes as primeiras reações emocionais como produtos da interação primitiva do ser humano com o meio. Dentre elas, a utilização da voz berrante e feroz como mecanismo para afastar animais predadores).

5. Mudança: Por fim, o elemento Espírito é associado ao resultado do ritual, qual seja, a mudança almejada, que pode ser definida como iluminação, evolução, conversação, etc. Optamos por utilizar o termo “mudança”, para fins de se evitar a carga de informações que foi associada às palavras que se referem à espiritualidade. Sugere-se que, após a finalização de todo ritual, seja realizado um período de silêncio a fim de se integrar o complexo de atos que foram realizados. Por isso, o Elemento Espírito no ritual enseja silêncio interior.

I. O Yoga é a arte de unir a mente a uma única ideia. Tem quatro métodos. […].Estes são unidos pelo método supremo do Silêncio.  II. A Magia Cerimonial é a arte de unir a mente a uma única ideia. Tem quatro métodos. […]. Estes são unidos pelo método supremo do Silêncio.

(Cartas aos Probacionistas)

BIBLIOGRAFIA:

  • AIRES, Grasielle Aires da. O Conceito de Ritual em Richard Schechner e Victor Turner: Análises e Comparações. Revista aSPas. USP, 2013.
  • CROWLEY, Aleister. Cartas aos Probacionistas. The Equinox, Vol I, No. II. 1909.
  • CROWLEY, Aleister. Liber ABA (Book Four). The Equinox, Vol. I, No. VIII.  1913.
  • CROWLEY, Aleister. Liber O vel Manus Sagittae. The Equinox, Vol I, No. II. 1909.
  • CROWLEY, Aleister. Liber CCCXXXIII – O Livro das Mentiras: Que também é falsamente chamado de QUEBRAS. As divagações ou falsificações do único pensamento de Frater Perdurabo, cujo pensamento é ele próprio falso. 1913. 
  • JUNG, Carl G. Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes, 2013.
  • JUNG, C.G., M.-L. von Franz, J.L. Henderson, J.Jacobi, A. Jaffé.  O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1969.
  • KÖRBES HAULSCHILD, Álvaro. A Doutrina do Trabalho Divino: A Influência da Teurgia dos Oráculos Caldeus sobre a Filosofia de Jâmblico. UFRGS, 2019.
  • SCHECHNER, Richard. Performance Theory. Routledge, 2003.
  • TURNER, Victor. The Ritual Process: Structure and Anti-Structure. Aldine Transaction, 1969.