A Breve Autópsia de Uma Quimera de Três Cabeças

Faze o que tu queres será o todo da Lei.

Ama e faz o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos.

Agostinho de Hipona — “Comentário à Primeira Carta de João”

Certa vez, enquanto folheava “A Filosofia Perene” de Aldous Huxley, me deparei com essa frase de Santo Agostinho. Dificilmente o thelemita médio deixará de notar uma espantosa semelhaça entre ela e a Lei de Thelema. A Vontade e o Amor são pontos centrais, tanto em Thelema como na filosofia agostiniana. Além desse ponto de contato com Agostinho, há sua famosa auto-biografia chamada “Confissões”, cujo título, Crowley tomou, explicitamente, de caso pensado, para publicar também a sua própria — embora as associações subsequentes que faço aqui possam sem dúvida se tratar de meu próprio viés de confirmação, referências a Agostinho são evidentes na gênese de Thelema. Nada disso é por acaso, há convergências muito maiores na filosofia dos dois, como vou tentar demonstrar aqui.

Santo Agostinho, um dos ditos pais do Cristianismo Romano, foi um homem de interesses bem mundanos até a sua maturidade, porém, nunca deixou de debruçar-se sobre inquietações fundamentais da existência, como a problemática da existência do Mal. Notou a aparente contradição de um Deus bom que permite que o mal exista. Passou por algumas religiões buscando uma explicação teológica que o satisfizesse e, finalmente, encontrou a resposta: Deus, o Supremo Bem, é incapaz de fazer o Mal — dessa forma, o Mal existe porquê a vontade do homem é livre (a maioria de nós conhece a vontade livre pelo famoso termo “livre arbítrio”) e, munido deste supremo presente de Deus, o homem escolheu entregar-se cegamente a carne e aos sentidos que, por sua vez, se rebelaram contra o espírito, e assim, pela concupiscência no homem, abriu-se a porta para a existência do Mal no mundo.

Para Agostinho, a vontade não é má em si mesma. Pelo contrário, vontade é o motor do livre-arbítrio. É a faculdade que impulsiona a alma a agir e a tomar decisões. Agostinho via a vontade como o centro da vida moral e espiritual do ser humano. É a vontade, portanto, que escolhe o que o intelecto apresenta como bom ou mau. Porém, o desejo (concupiscentia), que é a manifestação da vontade corrompida pelo pecado original, aparece como impulso desordenado da alma em direção aos prazeres terrenos. No entanto, a vontade de um ser humano após o pecado original é dividida. Essa luta está descrita em sua auto-biografia “Confissões”, onde ele relata a sua própria batalha interna: “a vontade má fez nascer o desejo; e o desejo, consentido, fez nascer o hábito; e o hábito, não resistido, fez nascer a necessidade.” Essa dualidade na vontade é o cerne da tragédia humana: o ser humano quer fazer o bem, mas não tem a força para fazê-lo sozinho. A vontade e o desejo, quando não são dirigidos a Deus, levam à infelicidade e ao afastamento de Deus e a pessoa se torna escrava dos seus próprios desejos.

Não há laço que possa unir o dividido senão amor

Liber AL vel Legis, Cap. I, Vers. 41

Também, tomai vossa plenitude e vontade de amor como vós quiserdes, quando, onde e com quem vós quiserdes! Mas sempre para mim.

AL I:51

Agora, vamos ao remédio agostiniano:

            A vontade humana precisa então ser restaurada e fortalecida pela graça divina. É a construção do que Agostinho chama de “boa vontade” (em oposição à “vontade má”, no sentido não vulgar do termo) Essa é a vontade que vem da graça divina, do contato com Deus – da ajuda de Deus que ilumina o intelecto e a fortalece. Sem a graça divina, a vontade humana é incapaz de se libertar da escravidão do pecado e do desejo desordenado.

…os escravos servirão

AL II:58

O homem deve, portanto, ter sua vontade restaurada, refinada e fortalecida, na forma dessa “boa vontade” em consonância com a vontade de Deus.

Soa familiar?  Descoberta da Verdadeira Vontade? Conversação com o Sagrado Anjo Guardião? Seja feita a Tua Vontade? Faze o que Tu Queres?

Em resumo (Em Agostinho):

  • O Mal existe pela perversão do livre arbítrio ou livre vontade pelo homem, escravo de seus próprios desejos.
  • A vontade humana deve ser restaurada, purificada e fortalecida, pelo contato com a graça divina, tornando-se assim a “boa vontade”, alinhada com a de Deus.

Crowley, por sua vez, era um profundo conhecedor da Bíblia e dos Evangelhos. Então, creio que desprezar essas semelhanças com Agostinho como “meras coincidências” ou curiosidades sem valor possa ser uma super-simplificação, esvaziando de sentido algo muito mais profundo que merece criteriosa ponderação.

Por fim, penso que pode haver diversas razões para Crowley, de maneira tão obvia e evidente, ter referenciado tão diretamente Santo Agostinho em Thelema, as mais básicas, em minha humilde opinião:

  • Pode, em Thelema, estar redendo homenagem e criando ou reformando sobre o corpo filosófico de Agostinho.
  • Pode estar escarnecendo de Agostinho, ao “recortar” trechos de sua filosofia para dilapida-la.

Verdadeira Vontade thelêmica, se manifesta pelo conhecimento e conversação com o Sagrado Anjo Guardião, a Boa Vontade agostiniana,  se manifesta pelo contato com Deus, pela graça divina e ao orientar seus desejos para Ele.

Se te agradam os corpos, louva a Deus neles, e dirige teu amor para teu artífice, para não o desagradar nas mesmas coisas que te agradam.

Agostinho de Hipona — “Confissões”

É minha opinião pessoal, ao menos: Crowley foi (também) um reformador religioso de inspiração claramente Agostiniana-Nietzscheana, (se é que se pode vislumbrar tão fantástica e improvável quimera vivendo nos bolsos do titio).

A infame frase de Nietzsche sobre Deus estar morto, por exemplo, é uma crítica do que ele via como distorções pelas instituições humanas e igrejas. Não é uma afronta direta, em primeiro momento, à figura do Cristo. Fomos nós que o matamos, afinal, ao perverter os valores morais em favor da criação de instituições geridas por cínicos e hipócritas, na verdade, vazias de valores.

Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!

Nietzsche, F. — “Gaia Ciência”

No fundo, existiu um único cristão, e este morreu na cruz.

Nietzsche, F. — “O Anticristo”

Lembro aqui que a Bíblia também está cheia de passagens em que o próprio Jesus chama, com gosto, com raiva e com força, muitos sacerdotes de hipócritas — muitos até creditando a ele a destruição (e posterior reconstrução do templo).

No Liber 888, diz Crowley:

Minha única desculpa é que tenho uma qualificação muito especial, a saber, um conhecimento da Bíblia tão profundamente enraizado que dificilmente parecerá injusto dizer que formou todo o alicerce da minha mente.

E ainda, no Liber 888:

Por outro lado, se o Novo Testamento for o documento composto que se afirma neste ensaio, sou o mais verdadeiro de todos os cristãos. Concordo com praticamente todas as palavras atribuídas ao Yogi Jesus, e quase todas as palavras do Essênio. É verdade que rejeito o Salvadorismo, e o elemento judaico das profecias cumpridas, e o louvor à Lei de Moisés; mas confio humildemente que qualquer deficiência nesses aspectos possa ser mais do que compensada por uma superabundância em outro. Pois não só considero o culto de John Barleycorn a única religião verdadeira, como restabeleci sua adoração; nos últimos três anos, filiais da minha organização surgiram em todo o mundo para celebrar o antigo rito. Que assim seja.

Sobre a Missa Gnostica, no Equinócio Vol III edição de 1919, em seu Prospectus, Crowley diz:

Liber XV. de acordo com a Igreja Católica Gnóstica, que representa o cristianismo pré-cristão original e verdadeiro.

Assim, eu, particularmente, creio que Crowley seja um verdadeiro erudito, grande conhecedor dos textos, das experiências, dos fenômenos religiosos e espirituais e um genuíno reformador — com inspiração profundamente cristã (no sentido real do termo). Então sim, para mim, há sinais discretos em sua obra de que ele rende homenagem ao cristianismo verdadeiro (seja lá o que isso for), o melhora e o retifica para o Novo Aeon. É um arauto e profeta verdadeiro da transvaloração nietzscheana e, por mais improvável que isto seja, valendo-se das armas de Santo Agostinho.

Será Agostinho um santo gnóstico algum dia?

Amor é a lei, amor sob vontade.